quinta-feira, 15 de setembro de 2022

INTRODUÇÃO AO LIVRO DE REIS



Originalmente em hebraico estes dois livros faziam parte dos livros de Samuel e não estavam divididos. A primeira divisão é confirmada na Septuaginta (LXX), onde os quatro livros são designados de basileiai (“reinos”, ou “dinastias” ou “reinados”). Isto significa que os livros de Samuel eram designados por 1 e 2 de Reis e os respetivos livros de Reis eram conhecidos por 3 e 4 de Reis. 

No contexto do Cânon judeu, estes livros fazem parte do conjunto designado por “Profetas Anteriores”, que vai desde o livro de Josué até Reis. 

Ziony Zevit apresenta a estrutura destes livro em três partes principais seguidas de duas adições breves(1). 

A primeira secção  (1 Reis 1-11) descreve os feitos de Salomão com algum detalhe, onde se narra a construção do templo e a descrição do seu mobiliário. O autor usou como fonte de informação para a sua obra o “Livro dos Feitos de Salomão” (סֵפֶר דִּבֲרי שְׁלֹמֹה) (11:41).

A segunda secção (1 Reis 12 - 2 Reis 17) conta como o reino foi dividido em dois e passa a narrar de forma sobreposta a história dos reis de Judá e Israel até ao momento em que a Assíria destruiu o reino de Israel em 722 a.C. A fonte de informação usada pelo escritor foi o “Livro dos Feitos Diários dos Reis de Israel” (סֵפֶר דִּבֲרי הַיָּמִים לְמַלְכֵי יִשְׂרָאֵל) (14:19).

A terceira secção (2 Reis 18-25:21) narra  como os reis de Judá se comportaram até ao momento em que a Babilónia conquistou Jerusalém e destruiu o Templo em 586 a.C. Também para esta secção o escritor utilizou como fonte o “Livros dos Feitos Diários dos Reis de Judá” (סֵפֶר דִּבֲרי הַיָּמִים לְמַלְכֵי יְהוּדָה) (2 Reis 20:20). 

Quanto às duas adições feitas posteriormente, os estudiosos consideram que houve uma primeira (2 Reis 25:22-26) onde se narra a nomeação de Gedalias para governar em Judá, o qual, entretanto, foi assassinado por Ismael ao fim de sete meses. A segunda (2 Reis 25:27-30) informa que Joaquim, rei de Judá, foi liberto por Evil-Merodaque no trigésimo sétimo ano do cativeiro.

O que é preciso ter em conta é que estes livros não foram escritos com o mesmo conceito de história que se tem hoje. Os historiadores modernos procuram fazer uma descrição factual dos eventos passados e interpretar esses mesmos acontecimentos através de explicações. Como diz Zevit, a preocupação destes escritores sagrados era apresentar “um alargado ensaio teológico escrito” onde apresentavam as suas crenças e convicções de que “a destruição do Reino do Norte e a queda do sul se deveram às más orientações políticas dos seus reis”(1). A reiterar esta opinião também Konkel escreveu que “os Livros de Reis tendem a ser lidos como história no sentido mais moderno do termo em vez de como profecia, que era a forma como se considerava em Hebraico”(2).

De acordo com o autor destas narrativas histórico-proféticas, os reis são os principais responsáveis pelo desvio do povo da verdadeira adoração a Iavé e inevitáveis consequências que colocaram o povo no cativeiro da Babilónia. Um dos temos centrais na teologia deste escritor está relacionado com o lugar de adoração que aponta para o templo em Jerusalém, mas que havia necessidade de se destruir todos os lugares  espalhados pelo território onde outros deuses eram adorados. Na base deste pensamento estará o texto de Deuteronómio 12. Provavelmente no pensamento do escritor estará a orientação para o rei que se encontra em Deuteronómio 17:14-20. O povo já devia estar consciente da forma como Deus trabalha na história da humanidade, se tivesse o cuidado de ler a lei de Deus, conforme instiga o texto de Deuteronómio 28. 

Nesta obra deuteronomística, o profeta vai apresentando certas frases que se repetem ao longo da obra que são verdadeiras mensagens que denunciam os actos contrários ao que o texto de Deuteronómio preconiza e que se espalharam por todo o território.

De acordo com alguns académicos, esta obra literária deve ter tido um momento de redação por um escritor posterior. O facto é que em certas passagens nota-se que houve uma primeira abordagem do tema, em que se descreve o que há de melhor da personagem em causa e depois parece que alguém veio demonstrar o outro lado da moeda. Veja-se o caso de Josias sobre o qual é dito que foi um rei extraordinário que não houve ninguém semelhante a ele nem antes nem depois (cf. 2 Reis 23:25). Entretanto, os versículos seguintes mostram que não há bela sem senão. 

Na forma final como o texto se encontra, somos levados a pensar que a mensagem que o livro nos quer transmitir é que há um ideal que Deus quer para o seu povo, mas a realidade é obviamente outra. Os autores estão a escrever muito tempo depois dos eventos e por isso estão a demonstrar que afinal o ser humano viveu no sentido contrário ao propósito de Deus. Mas, Deus continua a ser fiel à sua promessa e propósito para o mundo e seus habitantes. É evidente que os discursos que aparecem no texto são caracteristicamente produzidos pelo escritor, porque não há indícios de que os discursos tivessem sido escritos ou gravados em pedra na altura. Ainda que houvesse a capacidade de memorização, não podemos dizer que o discurso de Salomão em formato de oração tenha sido reproduzido ipsis verbis como o temos agora. Como aventa Konkel, “estes discursos são admoestações e instruções proféticas para os três principais períodos da história de Israel”(2). A forma como o texto chegou até nós é demonstrativa de que a mensagem dos escritores é sublinhar que a situação não se deveu apenas às más políticas dos reis, mas também ao próprio povo que preferiu abraçar outros deuses em vez de servir única e exclusivamente Iavé. 

A promessa de Deus de restauração e renovação do pacto com o povo continua de pé. Por isso, é a este Deus, que continua a ser fiel à sua promessa, que o povo deve buscar, adorar e servir. Este é o Deus que continua a ser superior aos outros deuses. Como escreve Zevit, “Esta mensagem era especialmente importante por causa da viabilidade de uma explicação alternativa, a de que Judá foi exilado pelos babilónios porque os deuses babilónios, encabeçados por Marduque, eram mais fortes do que o Deus israelita, Iavé”(1). Por isso, é importante que os leitores, chegando ao fim desta obra deuteronomística, tenham um vislumbre de como Deus atua na história de modo a providenciar libertação para uma nova vida. 


(1) Ziony Zevit, “1 Kings: Introduction” em The Jewish Study Bible (2ª ed.), Oxford University Press, 2014, 653-4.

(2) August H. Konkel, 1 & 2 Kings, NIV Application Commentary, Zondervan, 2006, 23.

sexta-feira, 12 de março de 2021

A SEGUNDA PARTE DE ISAÍAS

 Um certo escriba chamado Jeshua Ben Eleazar Ben Sira escreveu um livro em hebraico entre 190 e 175 a.C., que ficou conhecido como o livro de Jesus Ben Siraque (ou Sira), a partir do texto em Hebraico, e como Sabedoria de Siraque, a partir do texto em Grego, e Eclesiástico, a partir do texto em Latim. É neste livro, cujo inicio é muito semelhante a Isaías 40:12s., que ele afirma que Isaías, do tempo de Ezequias, foi quem escreveu esta parte do livro de Isaías. A certa altura ele afirma, depois de falar da relação entre Isaías e Ezequias, que Isaías “Pelo seu grande espírito viu os acontecimentos finais; E reconfortou aqueles que estavam de luto em Sião. E à eternidade mostrou as coisas que serão; Todas as coisas escondidas, antes de acontecerem” (Eclesiástico 48:24-25) (tradução de Frederico Lourenço, Bíblia, vol. IV, Quetzal, 2018). Este e outros textos rabínicos mostram claramente que a tradição judaica nunca contestou a unicidade e autenticidade do livro. 

Mas em finais do século XVIII, alguns especialistas começaram a notar que o pano de fundo dos textos de 40-66 dizia respeito ao momento do cativeiro da Babilónia e subsequente libertação por parte de Ciro (Doerdelein em 1775 e Eichhorn em 1782). É notória a indicação de que a cidade de Jerusalém está destruída (42:22-25). Para além do contexto histórico, também começou a surgir a análise literária. Os estudos feitos sobre as características destes capítulos concluem que são predominantemente anúncios e promessas de salvação, excertos de disputas ou controvérsias, oráculos com características de processos judiciais.

Perante tudo isto, tem-se concluído que se está na presença de uma coleção de textos que pode também ser dividida em duas partes. Uma que vai do capítulo 40-55 e outra do capítulo 56-66. 
Dentro da primeira parte (40-55), podemos ver que o capítulo 40 é uma espécie de prólogo para os textos que apresentam Israel como o servo de Deus, com a promessa de livramento através de Ciro, castigando a Babilónia e os seus deuses (41-48); e para os textos que demonstram o profeta como servo de Deus que é desprezado e maltratado através do qual Deus opera a salvação para Sião e para o Seu povo (49-55). 

Este prólogo liga-se com o epílogo pela referência ao que acontecerá ao deserto, aos montes e aos outeiros para que a glória do Senhor se manifeste. Em 40:3-5, os montes e os outeiros serão aplanados, “pois a boca do Senhor o disse”. Por seu turno em 55:11-13, os montes e os outeiros rompem em cânticos, pois é neles que crescem a faia e a murta, porque como acontece com a chuva que desce sobre a terra e faz brotar, “assim será a palavra que sair da minha boca”, diz o Senhor. Aquilo que o Senhor disse realizar-se-á na vida deste povo, que vive no meio da idolatria.

A primeira parte do Isaías Segundo (41-48) inicia o tema sobre “O Servo de Iavé”. Normalmente, tem sido corrente identificá-lo com uma figura ideal com carácter messiânico. Mas muitos dos estudos feitos nesta área têm contribuído para se concluir que é um erro negar a aplicação do termo ao contexto histórico. Bentzen diz que “é um erro negar que o Servo de Javé seja uma pessoa histórica” (Introdução ao AT, ASTE, 1968, 126). É notório que ele se cinge apenas aos poemas em 42:1ss, 49:1ss, 50:4ss e 52:13-53:12, para falar apenas de um indivíduo. No entanto, uma leitura mais abrangente, embora circunscrita apenas aos capítulos 41-48, leva-nos a concluir que este “servo de Iavé” diz respeito ao povo de Israel. Esta interpretação que vê o “Servo de Iavé” como um colectivo, isto é, como Israel, foi defendida por muitos eruditos começando, segundo Kaiser, com Budde (Introduction, Augsburg, 1977, 267). Parece que H. W. Robinson desenvolveu bem a ideia de uma personalidade corporativa ("The Hebrew Conception of Corporate Personality", Werden und Wesen des Alten Testaments, ed. P. Volz, BZAW 66, 1936, 49-62). Como se pode ver, a tónica está na constante menção de que o Senhor escolheu Israel para ser o seu servo (41:8-9,13; 42:1,6; 43:1,10; 44:1,21,26; 45:4; 48:20). As discussões intermináveis que têm havido sobre este tema resultam da preocupação em atribuir todos os textos ou a uma figura individual ou ao conceito corporativo. Assim sendo, Childs, procurando contribuir para este debate através do seu método canónico, aponta as falhas do método exegético histórico-crítico. Segundo ele, “o processo canónico preservou a tradição do servo numa forma que reflete uma grande variedade de tensões” por causa da visão do servo como uma realidade corporativa e como um indivíduo. Por isso ele conclui que “a diversidade dentro do testemunho não pode ser resolvida em termos da experiência passada de Israel, de preferência o passado teria de receber o seu significado do futuro” (Introduction to the OT as Scripture, SCM Press, 1979, 335-6). Portanto, para ele só há uma possibilidade que é interpretar os poemas como uma mensagem de esperança escatológica para o Israel futuro. Perante esta conclusão somos levados a pensar que a mensagem do profeta naquele tempo pouco ou nenhum significado tinha para os ouvintes coevos. 

Por outro lado, esta secção também mostra que este servo do Senhor nem sempre foi fiel e obediente. Então, Deus não se pode calar nem pactuar com uma atitude destas (42:14-21). É por essa razão que o povo está no cativeiro da Babilónia como povo saqueado, escondido e despojado (42:22); entregue ao anátema e ao opróbrio (43:28). Entretanto, Deus vai retardando a sua ira para que o povo não seja exterminado totalmente (48:9), mas deixa que seja provado “na fornalha da aflição” (48:10). 

Imbricados nos textos da escolha de Israel para servo de Iavé e as denúncias da rebeldia do mesmo estão os textos que expressam que Deus é suficientemente poderoso para livrar Israel da vergonha imposta pela Babilónia (41:14; 42:13; 43:11-14; 47:1-3; 48:20). Afinal, Deus continua a amar a nação de Israel e não a abandonou. Deus é de confiança, pois ele cumpre aquilo que promete. 

Estes poemas do profeta são como que uma resposta a certas queixas, lamentos e até dúvidas que o povo expressa (cf. 40:27; 41:20-21; 43:18,22,26; 45:9-10,21). Todos estes discursos fazem lembrar o que se passou com o povo de Israel na travessia do deserto depois da saída do Egipto. Portanto, estes primeiros capítulos parecem identificar o “Servo de Iavé” com o povo de Israel, o qual deveria prestar atenção aos mandamentos de Deus, para que a paz e a justiça fosse uma realidade no seu meio (48:18-19). Este redundante falhanço do povo não impede que Deus continue a ser visto como o único Salvador com um propósito bem definido. O profeta do exílio, que denominamos por Isaías II, para não o confundir com o profeta que viveu até ao tempo do rei Ezequias, tinha o propósito de despertar o povo de uma letargia espiritual lembrando-o que Deus o chamou para ser o seu “Servo” por excelência no meio de profunda idolatria. À semelhança do que aconteceu na história passada no deserto, o povo continuava surdo e obstinado, mas Deus continua o mesmo. No entanto fica o aviso a terminar esta secção “Não há paz para ímpios, diz o Senhor” (48:22).