No dia 4 de Outubro, tive de me deslocar a Santa Maria da Feira para participar na cerimónia fúnebre em memória da minha tia Irene. Já o seu nome, proveniente da palavra grega eirênê, significa “paz”, pois também em paz ela morreu com os seus 90 anos (faria 91 em Janeiro do próximo ano). Ficarei para sempre com a imagem do sorriso encantador que ela tinha sempre que me via ou mesmo outra pessoa. Toda ela irradiava alegria e prazer em viver. Muitas vezes encontrava-a na sua casa agarrada à sua Bíblia. E dizia-me: “Estava a ler a Palavra”. Desde os seus 19 anos que ela conheceu a Jesus Cristo de uma forma mais pessoal quando partiu da antigamente conhecida Vila da Feira para o Porto. Ali conheceu aquele que veio a ser o ser marido (o Fernando). Posteriormente foram viver para Lisboa, e ali agregou-se à Igreja Evangélica da Assembleia de Deus, na Rua Neves Ferreira. Eu era muito pequeno quando o meu pai ganhou o segundo prémio de um concurso, que seria uma viagem para duas pessoas ou o dinheiro do valor da viagem. O meu pai preferiu o dinheiro para levar toda a família numa viagem a Lisboa. Era a primeira vez que eu ia a Lisboa. Claro, ficámos em casa da minha tia Irene. Posteriormente ela enviuvou e, passados alguns anos, casou com Amaro Policarpo, passando a viver na terra do marido em Manique, do concelho de Cascais. Eu e a minha irmã tivemos a oportunidade de passar férias em sua casa, e até chegámos a andar de cavalo. Isto é só para dizer que a minha tia transmitia uma alegria impressionante e uma serenidade pois, apesar de ser uma mulher de cidade, logo se adaptou à vida do campo sem qualquer preconceito. Ela estava sempre disposta a ajudar as suas vizinhas, pois a D. Irene até injecções sabia dar e gratuitamente, diziam. Ela aproveitava cada ocasião para dizer que Jesus também lhe tinha dado a salvação de graça para ter a vida eterna.
Agora, eu sei, ela está com o seu Senhor e Salvador a viver a vida eterna. Mas é principalmente nestes dias, infelizmente, que acabamos por encontrar familiares que não víamos há anos. Mais uma vez, esta foi a oportunidade para que os meus primos também ouvissem o testemunho sobre a tia Irene. Até a sua morte serviu para eu fazer esta reflexão e partilhar com todos os que ali se encontravam.
É nestas alturas que mais uma vez sentimos que nos encontramos perante uma encruzilhada, onde teremos de fazer uma escolha. É em circunstâncias de luto que somos levados a considerar a vida como um bem malfazejo. Apesar de ouvirmos muitas pessoas dizer “Que vida desgraçada”, todas gostam de viver, mas não de envelhecer. Todos gostam de viver, mas não sofrer. Todos gostam de viver, mas não de se deparar com a morte. A nossa existência, porém, coloca-nos nesta situação - a dos contrastes. Em tudo, nós encontramos esses contrastes. Começamos com o contraste entre o dia e a noite, continuamos nos contrastes entre o frio e o calor, entre o seco e o húmido, entre o correr e o caminhar, entre a riqueza e a pobreza, entre o acreditar e o desacreditar, entre a alegria e a tristeza, entre o bem-estar e o sofrimento, e terminamos com o contraste entre a vida e a morte.
No entanto, parece que na nossa sociedade há alguns especialistas que nos querem fazer crer que não precisamos de viver esta ambivalência, pois apontam para uma filosofia de vida que se resume a tudo o que seja apenas matéria. Fazem-nos correr de tal maneira que não temos tempo para nada. Mas este nada acaba por ser relativo, pois temos tempo para aquilo que nós queremos apenas. Achamos que temos só uma vida e por isso temos de a viver na plenitude, porque uma vez morto acabou-se. Tal pensamento é um pensamento mesquinho, redutor. É considerar o ser humano abaixo de qualquer animal. Na realidade, quer-se é evitar o encontro com a morte. É não querer acreditar que existe um Deus criador e sustentador do universo, para o qual o ser humano se deve voltar, porque é só nele que encontra a verdadeira razão da sua existência. A azáfama, as preocupações da vida tiram-nos tempo para reflectirmos sobre a morte.
A morte é o estigma da nossa limitação. Perante ela só podemos concluir que somos finitos. Perante ela só podemos reconhecer que não somos senhores da vida que temos. Esta realidade, porém, não deve levar-nos a pensar que afinal não servimos para nada. Pois Deus na sua infinita misericórdia transmitiu-nos uma mensagem de esperança, uma mensagem de vida e vida plena. No centro dessa mensagem está a pessoa de Jesus Cristo, o qual vimos não como um excelente filósofo, nem como um bom ser moral, nem como um benfeitor apenas, mas sim como a evidência clara da existência de Deus, porque ele mesmo era o próprio Deus que se fez humano, para se identificar connosco. A mensagem de Jesus é que após a morte há vida. Ele provou-o com a sua própria ressurreição.
Foi por isso que o apóstolo Paulo escreveu um belíssimo tratado sobre a ressurreição em 1 Coríntios 15, onde, a certa altura ele escreve: "Mas agora Cristo ressuscitou dos mortos, e foi feito as primícias dos que dormem." (1 Cor. 15:20).
Chega de tempo em que pensámos que a vida se reduzia àquilo que vemos. Agora é o tempo de pela fé aceitarmos que Cristo está vivo, porque muitos cristãos na antiguidade o puderam confirmar. Este tempo é tempo de esperança, de confiança, de certeza para aqueles que morrem em Cristo. A ressurreição de Cristo é a segurança de que nós também seremos ressuscitados. Ele foi o primeiro.
Agora, para o cristão, aquele que crê em Cristo Jesus, já não predomina o binómio vida (-) morte, mas sim morte (+) vida. A nossa existência já não é um contraste entre a vida e a morte, pois o contraste é feito na ordem inversa, a morte com a vida. Antigamente o ser humano perguntava: O que é a vida se tudo acaba na morte? Agora, o cristão proclama: O que é a morte, se em Cristo seremos ressuscitados? É no plano do que é humano que ambas se realizam. Se a morte se concretiza num ser humano, a vida também se concretiza no ser humano. Por isso, a morte não é fim de todas as coisas. Ela existe para que possamos acreditar mais naquele que é o Senhor da vida.