quinta-feira, 7 de abril de 2016

A Comunidade Ideal



Todos os que criam estavam unidos e tinham tudo em comum. E vendiam suas propriedades e bens e os repartiam por todos, segundo a necessidade de cada um.” (Actos 2:44-45)


Este texto tem sido interpretado de duas maneiras diferentes. Uma delas é a interpretação ideológica. O texto foi escrito como idealismo unitário da comunidade cristã que se concretizará no futuro escatológico. Querem eles dizer que isto só acontecerá quando o mundo acabar e começar o Reino de Deus. Uma segunda interpretação é a histórica. Os cristãos realmente fizeram isto no início da igreja cristã, porque tinham a ideia de que o fim do mundo era iminente. Mais tarde, porém, verificaram que este modelo de sociedade não funcionava e, por isso, deixaram de o praticar. 


Hoje, são muito raros os que defendem que este é um princípio normativo para as comunidades cristãs. O texto mostra-nos que, na perspetiva lucana, este era, e é, o propósito de Deus para a sua igreja. 


Em primeiro lugar, temos de entender que os pobres eram a maioria da camada social. Joachim Jeremias diz que “já no tempo de Jesus, Jerusalém apresentava-se como um centro de mendicância” (em Jerusalém no Tempo de Jesus, Edições Paulinas, 1983, 166). Os pobres eram pessoas que dependiam do trabalho diário para a sua sobrevivência. Não é por acaso que Lucas é o evangelista que mais relatos tem sobre a vida agrária. Havia pessoas que tinham muitas propriedades e bens e precisavam de trabalhadores para cuidarem dos seus bens. A ganância e a cobiça dominava o pensamento dos ricos, que não se contentavam com o que possuíam e gostavam de aumentar o seu poder económico. Para confirmar esta ideia, podemos ver como Lucas relata um episódio em que Jesus propõe a alguém a parábola do rico insensato, cujo campo produzira com abundância (Lucas 12:13-21). 

Em segundo lugar, temos de entender que o problema não estava em ter alguma coisa, mas ter em demasia, ou querer ajuntar desmesuradamente. Não é por acaso que Lucas destaca o dito de Jesus: “Vendei o que possuís, e dai esmolas. Fazei para vós bolsas que não envelheçam; tesouro nos céus que jamais acabe, aonde não chega o ladrão e a traça não rói.” (Lucas 12:33). É este autor que também realça a mensagem de João, o Baptista, com um ensino específico para as pessoas que lhe perguntam o que devem fazer. A umas pessoas João respondeu: “Aquele que tem duas túnicas, reparta com o que não tem nenhuma, e aquele que tem alimentos, faça o mesmo.” (Lucas 3:11). Aos cobradores de impostos, que fizeram a mesma pergunta, João responde: “Não cobreis além daquilo que vos foi prescrito” (v. 13). Aos soldados, ele disse: “A ninguém queirais extorquir coisa alguma; nem deis denúncia falsa; e contentai-vos com o vosso soldo.” (v. 14). 



É notório na mensagem de Lucas que ele apreendeu de Jesus o ensino sobre uma comunidade e, consequentemente, uma sociedade onde imperava o sentido de igualdade e oportunidade para todos. O texto supra citado mostra que, mais uma vez, Lucas queria mostrar à sua comunidade a relevância da práxis que a igreja primitiva tinha, cerca de cinco décadas atrás. Aquilo que ele quer explicar ao seu destinatário Teófilo (ou destinatários = “os amigos de Deus”) é que, tendo Jesus começado a fazer e a ensinar estas coisas (Actos 1:1), agora era incumbência da comunidade cristã continuar esta mesma prática e ensino. A unidade da fé transformava a vivência comunitária. Quando as pessoas acreditam que tudo aquilo que têm é uma dádiva de Deus, então elas têm consciência que o que têm faz parte da comunidade e está ao serviço de toda a gente. 

Lucas utiliza o plural para falar de “propriedades e bens”, o que significa que o que está em causa é o terem em demasia em contraste com outros que não tinham nada. Por isso, eles vendiam e repartiam. Estes dois verbos estão ligados pela conjunção “e”. Isto quer dizer que quem tinha, por exemplo, dois terrenos vendia a quem podia comprar ou então repartia por quem não tivesse posses de comprar. A venda e a repartição era feita entre todos, como o demonstra o uso do termo grego pãs no dativo. E era de acordo com a necessidade que alguém tinha (tis eichen). Isto demonstra que as coisas não eram feitas de qualquer maneira, até porque naquele tempo também havia os que fingiam ter alguma doença e os que não gostavam de trabalhar. Nesta primeira fase, as ajudas eram feitas com bens materiais, a entrega em dinheiro aparece mais tarde. 


O importante é notar que aqui temos um conceito que perspetiva uma nova sociedade livre de ganâncias, de corrupção e de enriquecimento ilícito e desmesurado. Uma comunidade destas não se instaura pela força das armas nem pela força da lei. Ela surge por vontade de Deus e Sua influência no coração do ser humano. Os ensinos e a prática de Jesus são as molas impulsionadoras para a constituição de uma nova comunidade que, por sua vez, terá influência na sociedade. 

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

O CENTURIÃO DE CAFARNAUM

(Mateus 8:5-13; Lucas 7:1-10)


Esta história contada por estes dois evangelistas é um verdadeiro desafio à nossa fé. Quando colocamos os dois textos lado a lado, surgem-nos várias perguntas que põem em causa, provavelmente, a veracidade do acontecimento. 

Mateus fala do rapaz do centurião (a palavra grega pais, paidós também pode ter o sentido de “filho”; cf. João 4:49-51), enquanto Lucas fala de servo (palavra grega doulos que significa “escravo”). Mateus diz que o rapaz está paralítico e muito queixoso, enquanto Lucas diz que o servo está às portas da morte. Mateus relata que o próprio centurião foi ter com Jesus, enquanto Lucas relata que o centurião enviou uns anciãos dos judeus que apresentam razões para Jesus conceder o pedido ao centurião. Mateus informa que Jesus decide ir curar o rapaz e o centurião o impede. Lucas, por sua vez descreve que Jesus ia com os anciãos e, quando se aproxima da casa, o centurião envia uns amigos para o impedirem de entrar em casa.

No entanto, há elementos comuns aos narradores: a existência de um centurião em Cafarnaum que tem alguém doente e que pede a Jesus para o curar; entretanto diz a Jesus que não se acha digno de que o Senhor entre em sua casa; por isso, pede-lhe que diga uma palavra para haver cura; Jesus fica admirado com tamanha fé que não se encontra em Israel. 

O interessante é que as palavras do centurião e de Jesus são praticamente copiadas a papel químico. Lucas tem umas palavras a mais que servem de justificação para o impedimento a que Jesus não entre em sua casa, “não te incomodes… por isso nem ainda me julguei digno de ir à tua presença”. 

Haveria razões suficientes para apontar o dedo e dizer que nem os próprios evangelistas se entendiam a contar as histórias sobre Jesus. Por isso, alguns dizem que estas histórias foram inventadas pelos homens. Outros dizem que a Bíblia está cheia de contradições. E ainda há quem tente harmonizar os textos dizendo que Lucas é que tem a história toda e Mateus limitou-se a omitir a presença dos anciãos e dos amigos. Até poderia ser o caso, mas há outras diferenças que não se explicam tão facilmente. Veja-se como Mateus tem palavras de Jesus a seguir à constatação da fé (v. 11-12), as quais aparecem em Lucas num contexto e ordem diferentes (cf. Luc. 13:28-29). 

Foi por causa das diferenças existentes no relatos que os estudiosos em finais do século XIX e inícios do século XX começaram a lançar propostas de interpretação que clarificassem o sentido dos textos. Segundo os eruditos, principalmente com Bultmann, depois da morte e ressurreição de Jesus Cristo, a igreja começou a criar fórmulas associadas à sua confissão de fé. Muitas das fórmulas repetiam a ipsissima verba de Jesus. É evidente que esses ditos tinham um contexto histórico no tempo de Jesus, mas a igreja quis aplicar essas mesmas palavras a situações que se viviam no seu tempo, isto é, passado décadas após a ascensão de Jesus. Assim surgiu a área de investigação denominada “História da Tradição”. As narrativas e os ditos de Jesus tiveram um momento real, mas a igreja ao narrar os episódios foi adaptando-os ao seu contexto vivencial de forma a contextualizar a mensagem que Jesus transmitiu durante o seu ministério. 

É por esta razão que esta história do centurião de Cafarnaum foi transmitida com variantes. Mateus conheceu uma variante e Lucas outra. No entanto, ainda assim cada um colocou o seu cunho, a sua característica no relato. O âmago da história está na ênfase dada à relação entre um gentio (o centurião romano), o povo de Israel e Jesus. Os desenvolvimentos da história levam-nos a concluir que no processo da transmissão determinados elementos são divergentes, quer tenham sido por causas naturais ou por desígnio teológico, e que “o grau de divergência é demasiado significativo para ser ignorado” (Dunn, Unity and Diversity in the NT, 72s.).

Mateus pega neste episódio, que lhe chegou por via da tradição, e aplica-o à vida da sua igreja, constituída predominantemente de judeus. O evangelista quer mostrar que o poder de Jesus se manifesta também a quem não pertence à “elite”, isto é, ao povo judeu. A identificação da doença do rapaz do centurião como paralisia relembra o sumário de Mateus em 4:23-24. Os paralíticos estão inseridos na mesma lista que visa o ministério de Jesus não só para os judeus, mas também para os gentios de todas as partes. Se os judeus pensavam que a profecia de Isaías (53:4) se aplicaria apenas aos judeus, Mateus mostra que não é assim, como se pode ver em 8:17. Para este evangelista, Jesus é o verdadeiro intérprete das Escrituras, porque fala com uma solenidade incrível quando usa a expressão “Na verdade” (amên) (v. 10). Desta forma, Mateus faz com que Jesus se dirija aos judeus e não ao centurião. Em Israel, ele não encontrou uma única pessoa que tivesse uma fé semelhante à do centurião. 

Os versículos que se seguem (11-12) mostram a ênfase que Mateus quer dar. Segundo Schweizer (Matthew, 215), o milagre não é a questão central da narrativa, mas sim o aviso para aqueles que se escudavam na ideia de que eram filhos de Abraão e que, por isso, estariam no reino dos céus. Sobre a fé do centurião, Rene Latourelle escreveu: “Mateus introduz, na fé do centurião, certos elementos que, no tempo do evangelista, definiam o acesso ao cristianismo, a saber: reconhecer em Jesus o messias e salvador da humanidade; comprometer-se a segui-lo com uma fidelidade incondicional a fim de entrar no reino dos céus” (Milagros de Jesus y Teologia del Milagro, 280s.). Quem não tem uma fé como a que o centurião demonstrou não fará parte do banquete que se realizará no reino dos céus. Todos os israelitas que não crêem que Jesus é o Senhor que veio cumprir a Lei e os profetas “serão lançados nas trevas exteriores”. A salvação não depende da raça, nem da herança, nem da genealogia, nem da nação. A fé é uma atitude que se desenvolve na relação com o Senhor sem se exigir a sua presença física ou palpável. O Senhor atua mesmo à distância. 

Lucas, no diálogo entre Jesus e o centurião, tem praticamente as mesmas palavras, embora faça alguns acrescentos. O termo usado para “criado” (v. 7) é o mesmo que Mateus usa (pais). Mas no desenvolvimento da história, ele usa constantemente a palavra “servo” (doulos) (vv. 1, 3, 10). Leva-me a crer que Lucas quer demonstrar como a fé produz uma atitude diferente na relação entre patrão/escravo. Lucas é o evangelista que mais fala dos desfavorecidos, dos pobres, dos marginalizados. A sociedade não se preocupa(va) com a situação dos subordinados. Neste caso, vemos um centurião que, tendo um escravo às portas da morte, em vez de o deixar morrer manda uma delegação de judeus a rogar a Jesus que viesse salvá-lo (diasôdzô). Ainda que esta palavra tenha um sentido físico tendo em conta o final do versículo 10, já poderá ter a conotação espiritual. Quem se importaria com a condição física ou espiritual de um subalterno seu? Só quem tem uma fé relacional com o Senhor Jesus. Lucas informa-nos que o centurião ouviu falar acerca de Jesus (v. 3). Certamente, aquilo que ele ouviu sobre Jesus fez com que ele cresse que Jesus era o Senhor que poderia salvar o seu servo (escravo), assim como também fez com que ele tivesse uma atitude diferente para com os seus empregados. Quem tem fé em Jesus preocupa-se com o bem-estar daqueles que lhe são subalternos.