“Todos os que criam estavam unidos e tinham tudo em comum. E vendiam suas propriedades e bens e os repartiam por todos, segundo a necessidade de cada um.” (Actos 2:44-45)
Este texto tem sido interpretado de duas maneiras diferentes. Uma delas é a interpretação ideológica. O texto foi escrito como idealismo unitário da comunidade cristã que se concretizará no futuro escatológico. Querem eles dizer que isto só acontecerá quando o mundo acabar e começar o Reino de Deus. Uma segunda interpretação é a histórica. Os cristãos realmente fizeram isto no início da igreja cristã, porque tinham a ideia de que o fim do mundo era iminente. Mais tarde, porém, verificaram que este modelo de sociedade não funcionava e, por isso, deixaram de o praticar.
Hoje, são muito raros os que defendem que este é um princípio normativo para as comunidades cristãs. O texto mostra-nos que, na perspetiva lucana, este era, e é, o propósito de Deus para a sua igreja.
Em primeiro lugar, temos de entender que os pobres eram a maioria da camada social. Joachim Jeremias diz que “já no tempo de Jesus, Jerusalém apresentava-se como um centro de mendicância” (em Jerusalém no Tempo de Jesus, Edições Paulinas, 1983, 166). Os pobres eram pessoas que dependiam do trabalho diário para a sua sobrevivência. Não é por acaso que Lucas é o evangelista que mais relatos tem sobre a vida agrária. Havia pessoas que tinham muitas propriedades e bens e precisavam de trabalhadores para cuidarem dos seus bens. A ganância e a cobiça dominava o pensamento dos ricos, que não se contentavam com o que possuíam e gostavam de aumentar o seu poder económico. Para confirmar esta ideia, podemos ver como Lucas relata um episódio em que Jesus propõe a alguém a parábola do rico insensato, cujo campo produzira com abundância (Lucas 12:13-21).
Em segundo lugar, temos de entender que o problema não estava em ter alguma coisa, mas ter em demasia, ou querer ajuntar desmesuradamente. Não é por acaso que Lucas destaca o dito de Jesus: “Vendei o que possuís, e dai esmolas. Fazei para vós bolsas que não envelheçam; tesouro nos céus que jamais acabe, aonde não chega o ladrão e a traça não rói.” (Lucas 12:33). É este autor que também realça a mensagem de João, o Baptista, com um ensino específico para as pessoas que lhe perguntam o que devem fazer. A umas pessoas João respondeu: “Aquele que tem duas túnicas, reparta com o que não tem nenhuma, e aquele que tem alimentos, faça o mesmo.” (Lucas 3:11). Aos cobradores de impostos, que fizeram a mesma pergunta, João responde: “Não cobreis além daquilo que vos foi prescrito” (v. 13). Aos soldados, ele disse: “A ninguém queirais extorquir coisa alguma; nem deis denúncia falsa; e contentai-vos com o vosso soldo.” (v. 14).
É notório na mensagem de Lucas que ele apreendeu de Jesus o ensino sobre uma comunidade e, consequentemente, uma sociedade onde imperava o sentido de igualdade e oportunidade para todos. O texto supra citado mostra que, mais uma vez, Lucas queria mostrar à sua comunidade a relevância da práxis que a igreja primitiva tinha, cerca de cinco décadas atrás. Aquilo que ele quer explicar ao seu destinatário Teófilo (ou destinatários = “os amigos de Deus”) é que, tendo Jesus começado a fazer e a ensinar estas coisas (Actos 1:1), agora era incumbência da comunidade cristã continuar esta mesma prática e ensino. A unidade da fé transformava a vivência comunitária. Quando as pessoas acreditam que tudo aquilo que têm é uma dádiva de Deus, então elas têm consciência que o que têm faz parte da comunidade e está ao serviço de toda a gente.
Lucas utiliza o plural para falar de “propriedades e bens”, o que significa que o que está em causa é o terem em demasia em contraste com outros que não tinham nada. Por isso, eles vendiam e repartiam. Estes dois verbos estão ligados pela conjunção “e”. Isto quer dizer que quem tinha, por exemplo, dois terrenos vendia a quem podia comprar ou então repartia por quem não tivesse posses de comprar. A venda e a repartição era feita entre todos, como o demonstra o uso do termo grego pãs no dativo. E era de acordo com a necessidade que alguém tinha (tis eichen). Isto demonstra que as coisas não eram feitas de qualquer maneira, até porque naquele tempo também havia os que fingiam ter alguma doença e os que não gostavam de trabalhar. Nesta primeira fase, as ajudas eram feitas com bens materiais, a entrega em dinheiro aparece mais tarde.
O importante é notar que aqui temos um conceito que perspetiva uma nova sociedade livre de ganâncias, de corrupção e de enriquecimento ilícito e desmesurado. Uma comunidade destas não se instaura pela força das armas nem pela força da lei. Ela surge por vontade de Deus e Sua influência no coração do ser humano. Os ensinos e a prática de Jesus são as molas impulsionadoras para a constituição de uma nova comunidade que, por sua vez, terá influência na sociedade.