Originalmente em hebraico estes dois livros faziam parte dos livros de Samuel e não estavam divididos. A primeira divisão é confirmada na Septuaginta (LXX), onde os quatro livros são designados de basileiai (“reinos”, ou “dinastias” ou “reinados”). Isto significa que os livros de Samuel eram designados por 1 e 2 de Reis e os respetivos livros de Reis eram conhecidos por 3 e 4 de Reis.
No contexto do Cânon judeu, estes livros fazem parte do conjunto designado por “Profetas Anteriores”, que vai desde o livro de Josué até Reis.
Ziony Zevit apresenta a estrutura destes livro em três partes principais seguidas de duas adições breves(1).
A primeira secção (1 Reis 1-11) descreve os feitos de Salomão com algum detalhe, onde se narra a construção do templo e a descrição do seu mobiliário. O autor usou como fonte de informação para a sua obra o “Livro dos Feitos de Salomão” (סֵפֶר דִּבֲרי שְׁלֹמֹה) (11:41).
A segunda secção (1 Reis 12 - 2 Reis 17) conta como o reino foi dividido em dois e passa a narrar de forma sobreposta a história dos reis de Judá e Israel até ao momento em que a Assíria destruiu o reino de Israel em 722 a.C. A fonte de informação usada pelo escritor foi o “Livro dos Feitos Diários dos Reis de Israel” (סֵפֶר דִּבֲרי הַיָּמִים לְמַלְכֵי יִשְׂרָאֵל) (14:19).
A terceira secção (2 Reis 18-25:21) narra como os reis de Judá se comportaram até ao momento em que a Babilónia conquistou Jerusalém e destruiu o Templo em 586 a.C. Também para esta secção o escritor utilizou como fonte o “Livros dos Feitos Diários dos Reis de Judá” (סֵפֶר דִּבֲרי הַיָּמִים לְמַלְכֵי יְהוּדָה) (2 Reis 20:20).
Quanto às duas adições feitas posteriormente, os estudiosos consideram que houve uma primeira (2 Reis 25:22-26) onde se narra a nomeação de Gedalias para governar em Judá, o qual, entretanto, foi assassinado por Ismael ao fim de sete meses. A segunda (2 Reis 25:27-30) informa que Joaquim, rei de Judá, foi liberto por Evil-Merodaque no trigésimo sétimo ano do cativeiro.
O que é preciso ter em conta é que estes livros não foram escritos com o mesmo conceito de história que se tem hoje. Os historiadores modernos procuram fazer uma descrição factual dos eventos passados e interpretar esses mesmos acontecimentos através de explicações. Como diz Zevit, a preocupação destes escritores sagrados era apresentar “um alargado ensaio teológico escrito” onde apresentavam as suas crenças e convicções de que “a destruição do Reino do Norte e a queda do sul se deveram às más orientações políticas dos seus reis”(1). A reiterar esta opinião também Konkel escreveu que “os Livros de Reis tendem a ser lidos como história no sentido mais moderno do termo em vez de como profecia, que era a forma como se considerava em Hebraico”(2).
De acordo com o autor destas narrativas histórico-proféticas, os reis são os principais responsáveis pelo desvio do povo da verdadeira adoração a Iavé e inevitáveis consequências que colocaram o povo no cativeiro da Babilónia. Um dos temos centrais na teologia deste escritor está relacionado com o lugar de adoração que aponta para o templo em Jerusalém, mas que havia necessidade de se destruir todos os lugares espalhados pelo território onde outros deuses eram adorados. Na base deste pensamento estará o texto de Deuteronómio 12. Provavelmente no pensamento do escritor estará a orientação para o rei que se encontra em Deuteronómio 17:14-20. O povo já devia estar consciente da forma como Deus trabalha na história da humanidade, se tivesse o cuidado de ler a lei de Deus, conforme instiga o texto de Deuteronómio 28.
Nesta obra deuteronomística, o profeta vai apresentando certas frases que se repetem ao longo da obra que são verdadeiras mensagens que denunciam os actos contrários ao que o texto de Deuteronómio preconiza e que se espalharam por todo o território.
De acordo com alguns académicos, esta obra literária deve ter tido um momento de redação por um escritor posterior. O facto é que em certas passagens nota-se que houve uma primeira abordagem do tema, em que se descreve o que há de melhor da personagem em causa e depois parece que alguém veio demonstrar o outro lado da moeda. Veja-se o caso de Josias sobre o qual é dito que foi um rei extraordinário que não houve ninguém semelhante a ele nem antes nem depois (cf. 2 Reis 23:25). Entretanto, os versículos seguintes mostram que não há bela sem senão.
Na forma final como o texto se encontra, somos levados a pensar que a mensagem que o livro nos quer transmitir é que há um ideal que Deus quer para o seu povo, mas a realidade é obviamente outra. Os autores estão a escrever muito tempo depois dos eventos e por isso estão a demonstrar que afinal o ser humano viveu no sentido contrário ao propósito de Deus. Mas, Deus continua a ser fiel à sua promessa e propósito para o mundo e seus habitantes. É evidente que os discursos que aparecem no texto são caracteristicamente produzidos pelo escritor, porque não há indícios de que os discursos tivessem sido escritos ou gravados em pedra na altura. Ainda que houvesse a capacidade de memorização, não podemos dizer que o discurso de Salomão em formato de oração tenha sido reproduzido ipsis verbis como o temos agora. Como aventa Konkel, “estes discursos são admoestações e instruções proféticas para os três principais períodos da história de Israel”(2). A forma como o texto chegou até nós é demonstrativa de que a mensagem dos escritores é sublinhar que a situação não se deveu apenas às más políticas dos reis, mas também ao próprio povo que preferiu abraçar outros deuses em vez de servir única e exclusivamente Iavé.
A promessa de Deus de restauração e renovação do pacto com o povo continua de pé. Por isso, é a este Deus, que continua a ser fiel à sua promessa, que o povo deve buscar, adorar e servir. Este é o Deus que continua a ser superior aos outros deuses. Como escreve Zevit, “Esta mensagem era especialmente importante por causa da viabilidade de uma explicação alternativa, a de que Judá foi exilado pelos babilónios porque os deuses babilónios, encabeçados por Marduque, eram mais fortes do que o Deus israelita, Iavé”(1). Por isso, é importante que os leitores, chegando ao fim desta obra deuteronomística, tenham um vislumbre de como Deus atua na história de modo a providenciar libertação para uma nova vida.
(1) Ziony Zevit, “1 Kings: Introduction” em The Jewish Study Bible (2ª ed.), Oxford University Press, 2014, 653-4.
(2) August H. Konkel, 1 & 2 Kings, NIV Application Commentary, Zondervan, 2006, 23.