Ao ler o texto de Lucas 13:11, fiquei a pensar o que é que Lucas queria dizer com o facto de que na sinagoga, onde Jesus estava a ensinar num dia de Sabath, havia “uma mulher que tinha um espírito de enfermidade” (gunê pneuma échousa astheneias). O relato continua com Jesus a pronunciar à mulher a sua libertação da enfermidade, e termina com Jesus a repreender o chefe da sinagoga e todos os presentes por não quererem que num dia de Sabath se operasse a libertação da mulher que Satanás aprisionara.
Nos séculos do modernismo, os intérpretes da Bíblia têm aplicado a perspectiva científica negando e até considerando o texto bíblico como lendas da carochinha. A realidade é que temos um problema em mãos quando tentamos interpretar as questões da doença e da cura sem nos preocuparmos com o tipo de conceitos e linguagem que os escritores bíblicos usaram na sua época. John J. Pilch, num capítulo que escreveu sobre “Sickness and Healing in Luke-Acts” para a obra editada por Jerome H. Neyrey, The Social World of Luke-Acts: Models for Interpretation (1991), diz que para se perceber o que Lucas queria dizer é necessário “uma forma para se imaginar a linguagem de Lucas sobre doença e cura nos termos da sua própria cultura… A sensibilidade para as diferenças culturais e os requisitos das investigações e comparações das culturas convida o leitor a utilizar os métodos e conceitos apropriados às ciências sociais” (pg.182).
Quando analisamos o evangelho de Lucas nesta área das doenças e das curas verificamos que a cosmovisão do evangelista é caracterizada por um conjunto de crenças e práticas populares relativas à actividade dos espíritos e demónios. Lucas é o evangelista que tem mais relatos sobre as influências dos espíritos nas pessoas, mas que se traduzem em enfermidades. “Todos os contemporâneos de Jesus e os seus seguidores, no Mediterrâneo, acreditavam na realidade de um mundo de espíritos que regularmente se intrometiam nos assuntos humanos. A razão por que o mundo dos espíritos pode parecer mais evidente ou activo em Lucas do que em qualquer outro evangelista é que os seus leitores estavam provavelmente mais inclinados para esta forma de percepção e compreensão” (Pilch, 198).
Portanto, para as pessoas daquela época, todas as doenças eram identificadas com um espírito maligno. A sogra de Pedro tinha um espírito maligno que era denominado de “Febre” (puretós) e foi repreendido por Jesus (Lc 4:39). Um mudo tinha um espírito mudo e por isso não falava (Lc. 11:14). Quanto aos outros episódios, sempre há a referência de que Jesus curava os que tinham espíritos imundos. Lucas usava uma taxonomia das doenças das pessoas que era compreensível para a época. No entanto, “é importante ter em mente que ainda que as doenças relacionadas com os espíritos formem uma categoria de enfermidade, isto é, uma taxonomia, cada episódio deve ser interpretado no seu valor próprio, pois cada um será distintamente diferente” (Pilch, 203). Infelizmente a transposição dos conceitos daquele tempo para os tempos actuais tem levado muitas pessoas a usarem a mesma taxonomia e a considerarem que as doenças que as pessoas têm hoje são o resultado da acção demoníaca.
A minha opinião é que o evangelista, usando a terminologia do seu tempo, desejava mostrar que Jesus era superior aos medos e preconceitos que as pessoas tinham. Jesus tinha poder para restaurar as pessoas, individual, social e espiritualmente. No relato da mulher paralítica ou curvada, podemos notar que o manuscrito uncial D (codex Bezae), conhecido pela sua característica em alterar, acrescentar ou omitir texto, isto em finais do século V e inícios do VI, alterou a frase mencionada no início para “uma mulher que era enferma no espírito”. Com isto vemos que os copistas procuravam adaptar os textos às suas culturas e épocas. Contudo, a nossa tarefa não deve ser alterar o texto, mas entrar no mundo do evangelista e procurar compreender o que ele queria dizer.
O objectivo de Lucas é dizer que a pessoa que foi presa por Satanás, a partir de um determinado momento (há 18 anos), não tem capacidade para se endireitar por si mesma (note-se a frase mê dunaménê anakúpsai). Como qualquer pessoa devota a Deus, ela precisava de estar direita e levantar os olhos ao céu para adorar ao Senhor. A palavra grega traduzida por “endireitar” também aparece em Lucas 21:28 com o significado de “olhar para cima”. Partindo de uma situação física, Lucas dirige o pensamento dos leitores para a situação espiritual. É por isso que as palavras de Jesus são: “Mulher, estás livre (em grego é o Perfeito "apolélusai") da tua enfermidade”. Mas o ponto alto da narrativa deste episódio encontra-se no versículo 15, onde Lucas passa a usar o termo “Senhor”, para que os leitores tenham consciência de que quem fala é o Senhor ressurrecto, o Senhor da igreja, e não o Jesus terreno. Naquela sinagoga havia o espírito da hipocrisia que grassava nas pessoas que não queriam ser incomodadas no dia de Sabath; que não olhavam para a necessidade daquela mulher (foi preciso que Jesus a visse e a chamasse), mas que olhavam para as suas necessidades (soltavam os seus animais para lhes dar de beber); que se opunham (significado do termo “Satanás”) a que aquela mulher encontrasse a libertação da sua prisão.
Assim que Jesus colocou as suas mãos sobre ela, imediatamente ela ficou direita. O termo usado por Lucas foi anorthóô, que significa uma reconstrução ou restauração de uma estrutura caída. A estrutura essencial desta mulher estava completamente dobrada, porque Satanás, patente nas instituições sociais e religiosas, a mantinha dobrada espiritualmente porque ela tinha um defeito físico. A partir do momento em que ela fica direita na sua estrutura essencial, ela passa a glorificar a Deus. A ênfase não está na cura física, mas na libertação de tudo aquilo que a aprisionava e impedia de adorar a Deus (cf. Lev. 21:18-21).
sexta-feira, 27 de agosto de 2010
sexta-feira, 6 de agosto de 2010
MEDICINA E MILAGRE
“E tirando-o à parte de entre a multidão, pôs-lhe os dedos nos ouvidos e, cuspindo, tocou-lhe na língua. E, levantando os olhos ao céu, suspirou e disse: Efatá, isto é, abre-te.” (Mc 7:33-34)
Estes versículos fazem parte do episódio sobre a cura que Jesus realizou a um surdo, narrado no Evangelho de Marcos. Segundo Bultmann, este relato faz parte do material narrativo que a tradição cristã foi desenvolvendo a fim de transmitir a mensagem de salvação para o ser humano através de Jesus Cristo. É evidente que para ele o que importa é ver nesta história, designada por História de Milagre, um apelo a uma decisão existencial por parte da pessoa que lê ou ouve o relato. Portanto, as histórias não têm um propósito biográfico no sentido estrito para a vida de Jesus. Diz ele que, “os actos miraculosos não são provas do seu carácter, mas da sua autoridade messiânica, ou do seu poder divino” (History of the Synoptic Tradition, Herper & Row, 1976, 219). Deste modo, as histórias são trabalhadas de forma a fazerem as pessoas crer que Jesus é o Messias. Com este pensamento, ele não está muito preocupado com a historicidade dos acontecimentos e chega mesmo a considerar que dificilmente se poderá encontrar o que é que aconteceu historicamente debaixo da capa editorial dos evangelistas.
A maioria dos seus alunos, porém, conseguiu demonstrar que é possível encontrar o cerne histórico que deu origem depois à proclamação da fé. Para isso, começaram a estabelecer um programa criteriológico que desse consistência à convicção dos actos históricos de Jesus. Um dos critérios utilizados para apurar a historicidade dos milagres de Jesus é o que se chama de “Critério do Constrangimento” (John P. Meier, Um Judeu Marginal, Imago, 1993, 170). Com este critério, os estudiosos querem dizer que o evangelho tem relatos que criam dificuldades à igreja primitiva. Portanto, se a igreja estivesse preocupada em criar histórias fantásticas, nunca iria criar aquelas que iriam fazer o efeito contrário.
Neste relato, por exemplo, nós lemos que Jesus praticou uma série de actos que provocariam uma certa repugnância e nojo nas pessoas. O verbo “cuspir” está associado ao verbo “tocar”. A tradução da Sociedade Bíblica de Portugal em português corrente diz: “Pôs-lhe os dedos nos ouvidos e tocou-lhe na língua com saliva”. Também poderíamos traduzir: “e tocou-o cuspindo-lhe na língua”. Para quem queria apresentar um ser divino, por que haveria de mencionar uma coisa que criaria um sentimento de repugnância? O facto é que Mateus e Lucas, que estruturaram os seus evangelhos a partir do de Marcos, omitiram por completo este episódio. Terá sido por isso? Vários manuscritos procuraram outras posições para o verbo “cuspir”, colocando-o ora antes do verbo “pôr” ora depois (Vincent Taylor, The Gospel According to St. Mark, Baker Book house, 1981, 354). Mas o texto mais original mantém o verbo associado ao “tocar na língua”.
Outro elemento quer dá garantias de que este episódio é real é o facto de que estas acções eram muito comuns como técnica dos curandeiros gregos e judeus. Tácito e Suetónio escreveram que o imperador Vespasiano curou um homem com cuspo. Josefo, na sua obra Antiguidades, conta muitas histórias de homens que faziam curas semelhantes. Portanto, no ambiente palestino havia estas práticas que incluía: levar o doente para um lugar à parte, o toque com as mãos, o uso da saliva com poderes terapêuticos e o encorajamento verbal numa língua diferente. Ainda que o aramaico fosse a língua falada no tempo de Jesus por muitos judeus, o texto bíblico foi escrito em grego, e por isso o escritor deixa ficar o termo efathá. A realidade é que Jesus usou as técnicas correntes na sua época. Uma pequena diferença que encontramos no texto é o facto de Jesus olhar para o céu. Jesus podia usar a medicina convencional, mas não deixava de ensinar que mesmo assim a cura vem de Deus. O milagre dá-se na pessoa, que não consegue obedecer à proibição para não divulgar o que aconteceu. Os versículos 35 a 37 são certamente elementos de redacção do evangelista que acaba por usar um vocabulário diferente, para mostrar o que acontece na vida interior de uma pessoa que se encontra com Jesus.
Em conclusão, perante este episódio na sua tradição mais antiga e fidedigna com o que aconteceu, aprendemos que não há incompatibilidade entre a medicina e o milagre, porque apliquem o que aplicarem, usem o que usarem, Deus é quem tem a última palavra no processo. Efatá!
Estes versículos fazem parte do episódio sobre a cura que Jesus realizou a um surdo, narrado no Evangelho de Marcos. Segundo Bultmann, este relato faz parte do material narrativo que a tradição cristã foi desenvolvendo a fim de transmitir a mensagem de salvação para o ser humano através de Jesus Cristo. É evidente que para ele o que importa é ver nesta história, designada por História de Milagre, um apelo a uma decisão existencial por parte da pessoa que lê ou ouve o relato. Portanto, as histórias não têm um propósito biográfico no sentido estrito para a vida de Jesus. Diz ele que, “os actos miraculosos não são provas do seu carácter, mas da sua autoridade messiânica, ou do seu poder divino” (History of the Synoptic Tradition, Herper & Row, 1976, 219). Deste modo, as histórias são trabalhadas de forma a fazerem as pessoas crer que Jesus é o Messias. Com este pensamento, ele não está muito preocupado com a historicidade dos acontecimentos e chega mesmo a considerar que dificilmente se poderá encontrar o que é que aconteceu historicamente debaixo da capa editorial dos evangelistas.
A maioria dos seus alunos, porém, conseguiu demonstrar que é possível encontrar o cerne histórico que deu origem depois à proclamação da fé. Para isso, começaram a estabelecer um programa criteriológico que desse consistência à convicção dos actos históricos de Jesus. Um dos critérios utilizados para apurar a historicidade dos milagres de Jesus é o que se chama de “Critério do Constrangimento” (John P. Meier, Um Judeu Marginal, Imago, 1993, 170). Com este critério, os estudiosos querem dizer que o evangelho tem relatos que criam dificuldades à igreja primitiva. Portanto, se a igreja estivesse preocupada em criar histórias fantásticas, nunca iria criar aquelas que iriam fazer o efeito contrário.
Neste relato, por exemplo, nós lemos que Jesus praticou uma série de actos que provocariam uma certa repugnância e nojo nas pessoas. O verbo “cuspir” está associado ao verbo “tocar”. A tradução da Sociedade Bíblica de Portugal em português corrente diz: “Pôs-lhe os dedos nos ouvidos e tocou-lhe na língua com saliva”. Também poderíamos traduzir: “e tocou-o cuspindo-lhe na língua”. Para quem queria apresentar um ser divino, por que haveria de mencionar uma coisa que criaria um sentimento de repugnância? O facto é que Mateus e Lucas, que estruturaram os seus evangelhos a partir do de Marcos, omitiram por completo este episódio. Terá sido por isso? Vários manuscritos procuraram outras posições para o verbo “cuspir”, colocando-o ora antes do verbo “pôr” ora depois (Vincent Taylor, The Gospel According to St. Mark, Baker Book house, 1981, 354). Mas o texto mais original mantém o verbo associado ao “tocar na língua”.
Outro elemento quer dá garantias de que este episódio é real é o facto de que estas acções eram muito comuns como técnica dos curandeiros gregos e judeus. Tácito e Suetónio escreveram que o imperador Vespasiano curou um homem com cuspo. Josefo, na sua obra Antiguidades, conta muitas histórias de homens que faziam curas semelhantes. Portanto, no ambiente palestino havia estas práticas que incluía: levar o doente para um lugar à parte, o toque com as mãos, o uso da saliva com poderes terapêuticos e o encorajamento verbal numa língua diferente. Ainda que o aramaico fosse a língua falada no tempo de Jesus por muitos judeus, o texto bíblico foi escrito em grego, e por isso o escritor deixa ficar o termo efathá. A realidade é que Jesus usou as técnicas correntes na sua época. Uma pequena diferença que encontramos no texto é o facto de Jesus olhar para o céu. Jesus podia usar a medicina convencional, mas não deixava de ensinar que mesmo assim a cura vem de Deus. O milagre dá-se na pessoa, que não consegue obedecer à proibição para não divulgar o que aconteceu. Os versículos 35 a 37 são certamente elementos de redacção do evangelista que acaba por usar um vocabulário diferente, para mostrar o que acontece na vida interior de uma pessoa que se encontra com Jesus.
Em conclusão, perante este episódio na sua tradição mais antiga e fidedigna com o que aconteceu, aprendemos que não há incompatibilidade entre a medicina e o milagre, porque apliquem o que aplicarem, usem o que usarem, Deus é quem tem a última palavra no processo. Efatá!
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