sexta-feira, 6 de agosto de 2010

MEDICINA E MILAGRE

E tirando-o à parte de entre a multidão, pôs-lhe os dedos nos ouvidos e, cuspindo, tocou-lhe na língua. E, levantando os olhos ao céu, suspirou e disse: Efatá, isto é, abre-te.” (Mc 7:33-34)

Estes versículos fazem parte do episódio sobre a cura que Jesus realizou a um surdo, narrado no Evangelho de Marcos. Segundo Bultmann, este relato faz parte do material narrativo que a tradição cristã foi desenvolvendo a fim de transmitir a mensagem de salvação para o ser humano através de Jesus Cristo. É evidente que para ele o que importa é ver nesta história, designada por História de Milagre, um apelo a uma decisão existencial por parte da pessoa que lê ou ouve o relato. Portanto, as histórias não têm um propósito biográfico no sentido estrito para a vida de Jesus. Diz ele que, “os actos miraculosos não são provas do seu carácter, mas da sua autoridade messiânica, ou do seu poder divino” (History of the Synoptic Tradition, Herper & Row, 1976, 219). Deste modo, as histórias são trabalhadas de forma a fazerem as pessoas crer que Jesus é o Messias. Com este pensamento, ele não está muito preocupado com a historicidade dos acontecimentos e chega mesmo a considerar que dificilmente se poderá encontrar o que é que aconteceu historicamente debaixo da capa editorial dos evangelistas.

A maioria dos seus alunos, porém, conseguiu demonstrar que é possível encontrar o cerne histórico que deu origem depois à proclamação da fé. Para isso, começaram a estabelecer um programa criteriológico que desse consistência à convicção dos actos históricos de Jesus. Um dos critérios utilizados para apurar a historicidade dos milagres de Jesus é o que se chama de “Critério do Constrangimento” (John P. Meier, Um Judeu Marginal, Imago, 1993, 170). Com este critério, os estudiosos querem dizer que o evangelho tem relatos que criam dificuldades à igreja primitiva. Portanto, se a igreja estivesse preocupada em criar histórias fantásticas, nunca iria criar aquelas que iriam fazer o efeito contrário.

Neste relato, por exemplo, nós lemos que Jesus praticou uma série de actos que provocariam uma certa repugnância e nojo nas pessoas. O verbo “cuspir” está associado ao verbo “tocar”. A tradução da Sociedade Bíblica de Portugal em português corrente diz: “Pôs-lhe os dedos nos ouvidos e tocou-lhe na língua com saliva”. Também poderíamos traduzir: “e tocou-o cuspindo-lhe na língua”. Para quem queria apresentar um ser divino, por que haveria de mencionar uma coisa que criaria um sentimento de repugnância? O facto é que Mateus e Lucas, que estruturaram os seus evangelhos a partir do de Marcos, omitiram por completo este episódio. Terá sido por isso? Vários manuscritos procuraram outras posições para o verbo “cuspir”, colocando-o ora antes do verbo “pôr” ora depois (Vincent Taylor, The Gospel According to St. Mark, Baker Book house, 1981, 354). Mas o texto mais original mantém o verbo associado ao “tocar na língua”.

Outro elemento quer dá garantias de que este episódio é real é o facto de que estas acções eram muito comuns como técnica dos curandeiros gregos e judeus. Tácito e Suetónio escreveram que o imperador Vespasiano curou um homem com cuspo. Josefo, na sua obra Antiguidades, conta muitas histórias de homens que faziam curas semelhantes. Portanto, no ambiente palestino havia estas práticas que incluía: levar o doente para um lugar à parte, o toque com as mãos, o uso da saliva com poderes terapêuticos e o encorajamento verbal numa língua diferente. Ainda que o aramaico fosse a língua falada no tempo de Jesus por muitos judeus, o texto bíblico foi escrito em grego, e por isso o escritor deixa ficar o termo efathá. A realidade é que Jesus usou as técnicas correntes na sua época. Uma pequena diferença que encontramos no texto é o facto de Jesus olhar para o céu. Jesus podia usar a medicina convencional, mas não deixava de ensinar que mesmo assim a cura vem de Deus. O milagre dá-se na pessoa, que não consegue obedecer à proibição para não divulgar o que aconteceu. Os versículos 35 a 37 são certamente elementos de redacção do evangelista que acaba por usar um vocabulário diferente, para mostrar o que acontece na vida interior de uma pessoa que se encontra com Jesus.

Em conclusão, perante este episódio na sua tradição mais antiga e fidedigna com o que aconteceu, aprendemos que não há incompatibilidade entre a medicina e o milagre, porque apliquem o que aplicarem, usem o que usarem, Deus é quem tem a última palavra no processo. Efatá!

Sem comentários:

Enviar um comentário