terça-feira, 31 de julho de 2012

Consagração de Mulheres (2)


2. O Evento Fundamental da Fé Cristã
Com a ressurreição de Jesus Cristo iniciou-se uma revolução inesperada na história da humanidade. Isto não se consegue explicar através de categorização interno-históricas, religiosas ou psicológicas. Foi um acto novo de Deus. Este evento fala de nova criação e salvação para a humanidade. Por esta razão o apóstolo Paulo escreveu acerca de Deus como aquele que dá vida aos mortos, que chama à existência as coisas que não existiam e que justifica o ímpio que tem fé (Rom. 4:5, 17). Foi com a ressurreição de Jesus e suas aparições que se começou a formar o núcleo de uma comunidade de fé. A novidade da revelação de Deus em Jesus Cristo tornou-se historicamente manifesta no “corpo de Cristo”, a igreja, que é a koinonia de pessoas onde Cristo é crido e obedecido. E como se pode ter a certeza de que esta koinonia não é mais um clube religioso semelhante a tantos outros na época? A novidade da ressurreição resultou numa proclamação da igreja que foi preservada na epístola de Paulo aos Gálatas.

3. Gálatas 3:28
O resumo da mensagem deste texto é este: Há uma nova realidade histórica dividida em dois períodos – o velho e o novo.
No versículo 24 lemos que o período da lei é de restrição e de prisão. A lei é descrita como um “aio” (a palavra grega é paidagôgós que deu origem à palavra portuguesa “pedagogo”), aquele escravo que leva a criança do seu senhor à escola e a protege de molestadores. Ele tinha a reputação de ser duro e rude, limitando a liberdade e o desenvolvimento da criança.
No versículo 25, Paulo assegura o rompimento radical, isto é, a descontinuidade entre a lei e o evangelho. A novidade da ressurreição de Cristo chegou ao mundo e começa a moldar a história. Não há dúvida de que a declaração de Paulo tem implicações sociais e políticas com uma dimensão até revolucionária. As três implicações apresentadas no versículo 28 são o factor revolucionário do evangelho.
Não há judeu nem grego – As barreiras culturais que separavam os judeus dos gregos durante séculos foram derrubadas. Os judeus não poderiam continuar a sentir-se superiores. Em Cristo, quaisquer privilégios baseados na nacionalidade, cultura ou raça são suspensos. Em Cristo eu não posso mais separar-me do outro.
Não há escravo nem livre – Embora a igreja não o tenho ouvido nem compreendido durante 1800 anos, a expressão “em Cristo” exige que a escravatura seja abolida, se é que queremos ouvir, crer e obedecer ao evangelho. Nos tempos antigos, a escravatura era um pilar económico e social importante. Por isso, as igrejas devem ter tido muita dificuldade em lidar com esta situação. Elas queriam manter boas relações com a sociedade à sua volta para poder comunicar o evangelho e depois esperavam que, com o tempo, as relações dos crentes escravos e senhores fossem mudando paulatinamente. O caso paradigmático é o de Onésimo. Este era um escravo que fugiu do seu senhor Filemom e que se encontrou com Paulo na prisão. Na carta que escreve a Filemom, Paulo informa o destinatário que já não deve receber a Onésimo como escravo, mas como amado irmão (Filemom 16). Paulo certamente convenceu Onésimo a voltar para o seu dono com o sentimento de que em Cristo o relacionamento entre eles iria ser diferente.
Não há macho nem fêmea – O texto claramente informa que na igreja cristã não deve haver distinção entre as pessoas com base no seu género. É evidente que há diferença entre um homem e uma mulher, e isso é importante para que se origine o amor, e é essencial para a sobrevivência da humanidade. Mas em Cristo as diferenças naturais não devem ser usadas para determinar papéis teológicos. Ao utilizar as palavras “macho e fêmea”, Paulo reporta-se ao texto de Génesis 1:27. Ele quer dizer que a intenção original de Deus na criação é restaurada em Cristo. De acordo com o texto da criação da fonte sacerdotal, tanto o macho como a fêmea foram criados à imagem de Deus. Eles são colocados no mesmo pé de igualdade perante Deus. E Deus deu ordens a ambos para que se multiplicassem, frutificassem e sujeitassem e dominassem a terra e os animais (v. 28-29). É importante também ler o texto de Génesis 5:2 que diz: “Macho e fêmea os criou, e os abençoou, e chamou o seu nome Adão (em hebraico adam que também pode significar “humanidade” ou “ser humano”), no dia em que foram criados”.
Portanto, a ressurreição de Cristo trouxe um novo começo para um mundo que estava aprisionado pelo pecado e pelas estruturas sociais que dividiam os seres humanos e não lhes davam a verdadeira dignidade que tinham por direito divino. Os cristãos que ouvem e crêem no evangelho de Jesus Cristo são aqueles que permitem que esta novidade para a humanidade molde as suas vidas e seja praticada no seu meio. É preciso fazer um justo juízo dos costumes sociais, culturais, políticos, religiosos e económicos assim como das tradições para fazer jus à novidade do evangelho.

4. Jesus e as Mulheres
Durante o seu ministério, verificamos que Jesus sempre enalteceu a dignidade da mulher em contraste com as estruturas sociais moldadas pelo patriarcalismo. Joaquim Jeremias, no seu livro Jerusalém no Tempo de Jesus, escreveu sobre a situação social da mulher apresentando vasta literatura sobre o assunto. Logo no início do capítulo ele escreveu: “No Oriente, a mulher não participa da vida pública; o mesmo acontecia no judaísmo do tempo de Jesus, pelo menos entre as famílias judaicas fiéis à Lei”. O macho dominava em casa, no templo e na sociedade e sabia como proteger os seus interesses. A mulher era possessão do homem. Por isso, não podia estudar a Torá nem participar nos cultos. O historiador judeu Josefo descreveu que as mulheres só poiam entrar até ao átrio dos gentios e das mulheres, ficando impedidas de entrar no Templo propriamente dito. Um homem podia divorciar-se da mulher, mas a mulher não. As adúlteras ou prostitutas eram apedrejadas, mas o homem era intocável. E estas diferenças não eram apenas sociais ou funcionais, mas estavam revestidas com argumentos filosóficos e teológicos. Os judeus colocavam as mulheres no mesmo patamar dos cães e dos gentios nas suas orações.
Jesus tanto curou homens como mulheres. A uma mulher impura ele chamou de “filha de Abraão” (Luc. 13:16). Deixou-se tocar por uma mulher que estava impura cerimonialmente (Mar. 5:25-34). Ele tinha mulheres que o seguiam (Luc. 8:1-3). Perdoou e restaurou a dignidade a uma pecadora que lhe ungiu os pés (Luc. 7:36-50). De acordo com os evangelhos, vemos que a posição de Jesus perante as mulheres trouxe um precedente sem igual na história da época. Ele altera conscientemente os costumes a ponto de não só elevar a mulher acima do nível em que a tradição a mantinha mas também de a colocar em pé de igualdade com o homem (Mat. 21:31-32). Portanto, Jesus não se deixou determinar pela cultura nem teologia do seu tempo, mas procurou instituir a intenção original de Deus. Ele foi o pioneiro de uma nova humanidade que nunca mais usou “Deus” para validar as práticas culturais e sociais. 

quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

CONSAGRAÇÃO DE MULHERES AO MINISTÉRIO

Um mês atrás, fui convidado para apresentar uma palestra sobre um tema que é ainda tabu no nosso contexto cultural, social e religioso pois diz respeito ao papel da mulher na nossa sociedade. Será que a mulher tem o mesmo direito de exercer qualquer profissão que seja exercida pelo homem? Já se vai notando alguma mudança de pensamento e comportamento em relação a este assunto. Já vimos mulheres em profissões que nunca se pensaria que alguma vez o viessem a fazer ou lhes viesse a ser permitido (pelos homens, claro). No entanto, no contexto religioso, permanece a questão se elas poderão exercer a função sacerdotal. Poderão ou deverão as mulheres também ser consagradas ao sacerdócio (no caso da Igreja Católica), ou ao serviço pastoral (no caso das igrejas evangélicas)? Disseram-me que eu era a única pessoa que conheciam que tinha uma posição favorável a este assunto. Fiquei abismado. Será que mais ninguém aceita que as mulheres também podem exercer esta função na vida da Igreja de Jesus Cristo? Procurei juntar uma série de ideias que fui compilando ao longo dos anos para apresentar as razões por que concordo que elas sejam consagradas.


1. Ponto de Partida

Qualquer cristão que se preze tem a preocupação em saber qual é a vontade de Deus para a sua vida e para a vida da Sua igreja. Por isso, procura na Bíblia a resposta às suas dúvidas ou preocupações. Mas não podemos esquecer que ninguém consegue aproximar-se dos textos bíblicos sem as suas pressuposições. A nossa educação, formação e contexto cultural têm sempre influência na maioria das nossas posições e formas de pensar. Daí que seja necessário refletir se efetivamente estamos a ser influenciados pelo texto que nos fala ou se estamos a influenciar o texto com as nossas ideias preconcebidas. Os opositores de Jesus usaram muitas vezes os textos sagrados para o condenarem. E a igreja primitiva confrontou-se com grupos que usavam as Escrituras para defenderem posições antagónicas.

O facto é que não podemos usar as nossas experiências e contextos culturais nem tão pouco a voz da consciência para determinar qual o ponto de vista verdadeiro ou correcto. No entanto, é preciso ter uma chave e medida para interpretar as Escrituras assim como a nossa consciência e/ou experiências.

a. A Chave de Interpretação

João, o evangelista, registou no seu evangelho palavras de Jesus que serviram de factor comum para a proclamação do evangelho quando exarou as palavras de Jesus que disse: “Examinais as Escrituras, porque vós cuidais ter nelas a vida eterna, e são elas que de mim testificam” (João 5:39). Jesus Cristo, como é retratado pelas Escrituras e testemunhado nas Escrituras, é a única palavra de Deus que devemos ouvir, confiar e obedecer.

Paulo também está preocupado em afirmar que é Cristo que fala através dele e faz coisas extraordinárias por seu intermédio (2 Cor. 13:3; Rm. 15:18). Segundo ele, Jesus Cristo é o único fundamento da fé cristã (1 Cor. 3:11). De acordo com o evangelista João, Jesus Cristo é que é a verdadeira Palavra de Deus que se fez carne e habitou entre nós (João 1:14). Do mesmo modo o autor da epístola aos Hebreus, falando acerca de Jesus Cristo, diz que ele é a palavra viva e eficaz (Heb. 4:12). Esta Palavra de Deus (ho lógos tou theou ), isto é, Jesus Cristo, é que penetra até ao mais íntimo do ser humano para discernir pensamentos e intenções, “e não há criatura alguma encoberta diante dele” (este pronome “dele” refere-se à “Palavra de Deus” no versículo anterior) (Hebreus 4:13). O teólogo baptista Thorwald Lorenzen escreveu: “O evangelho por sua verdadeira natureza era e é uma palavra viva antes de se tornar a palavra escrita” (palestra apresentada na Igreja Baptista de Camberra, Austrália).

b. Continuidade e Descontinuidade

A palavra de Deus foi sempre pregada em situações de continuidade e descontinuidade. A continuidade na linguagem, cultura e costumes foi sempre necessária para ganhar a confiança das pessoas, para ter contacto com elas e comunicar-lhes o evangelho. Esta é a razão por que encontramos no texto bíblico códigos de instruções domésticas, pois os crentes eram chamados a terem um comportamento que fosse usual e aceitável no mundo greco-romano. Por exemplo, as mulheres são aconselhadas a não falarem na igreja (1 Cor. 14:35), a não ensinar nem a ter autoridade sobre os homens (1 Tim. 2:12) e a aceitar o facto de que o homem é a cabeça da mulher (Col. 3:18). Os escravos devem obedecer aos seus senhores (Ef. 6:5) e os filhos aos seus pais (Col. 3:20). Tudo isto diz respeito ao comportamento da época.

Ao mesmo tempo a singularidade e a novidade radical da mensagem cristã só podia vir à luz se a descontinuidade do evangelho com a cultura também fosse reconhecida. Com a ressurreição de Jesus Cristo, Deus falou uma nova palavra, uma palavra criadora e moldadora da história. Por isso é que temos a ordem para que os maridos “amem as suas mulheres” (Ef. 5:25, 28, 33). Para os cristãos, a autoridade suprema para a visão moral da vida não pode ser a cultura nem os costumes, mas deve ser a revelação de Deus na ressurreição do Cristo crucificado: “vós servis a Cristo, o Senhor” (Col. 3:24).

Esta reflexão sobre a continuidade e a descontinuidade leva-nos a uma regra hermenêutica importante. Para se tentar descobrir o conteúdo e a ênfase da visão cristã sobre a realidade, devemos prestar mais atenção à descontinuidade do que à continuidade com a situação em que a fé se tornou evento. A identidade e a integridade da fé, muitas vezes, jaz na sua diferença da cultura à sua volta. Quando se realça que as mulheres devem ser submissas e não podem falar na igreja nem ensinar, estamos a falar da semelhança com a cultura da época. É nos textos onde se afirma a igualdade do homem e da mulher que se nota a diferença para com a sociedade daquele tempo; é quando as mulheres tomam a liderança nas igrejas fundadas nos lares que se nota a diferença; é quando as mulheres são identificadas como apóstolos, e diáconos e profetas que a novidade da fé cristã começa a afectar e a moldar a história (mais adiante voltarei a falar sobre isto).

É preciso fazer uma reflexão teológica cuidada quando interpretamos a palavra viva e pregada a partir do texto escrito. Paulo escreveu as suas cartas para situações específicas da sua época. Por isso, o pregador deve falar a palavra de Deus para as situações do seu tempo. Depois de conhecer o “ali e então” passamos ao “aqui e agora”. Compreendendo a língua e os costumes e os problemas naquele tempo, é que podemos falar com uma nova língua e costumes para os problemas da nossa época. É por esta razão que temos quatro evangelhos e não um só. É por esta razão que Paulo escreveu várias cartas e não apenas uma para todas as igrejas. O conteúdo cristológico do evangelho tomou formas diferentes em situações diferentes.

Quando a palavra falada passou a escrita surgiu o risco de o evangelho vivo ficar congelado nas palavras exaradas no papel. Também cairemos na armadilha se esquecermos, por exemplo, que os quatro evangelhos e as cartas aos Romanos, Coríntios, etc. não foram escritas para nós. As mesmas palavras não significam a mesma coisa quando a situação muda. É nossa tarefa, quando lemos os escritos bíblicos, distinguir entre os elementos situacionais e aqueles que transcendem a situação. Para os cristãos, a “palavra de Deus” é evangelho, não lei. A palavra de Deus viva deve permanecer ligada à “história de Jesus” que permanece viva através do poder do Espírito Santo.

(continua...)