Um mês atrás, fui convidado para apresentar uma palestra sobre um tema que é ainda tabu no nosso contexto cultural, social e religioso pois diz respeito ao papel da mulher na nossa sociedade. Será que a mulher tem o mesmo direito de exercer qualquer profissão que seja exercida pelo homem? Já se vai notando alguma mudança de pensamento e comportamento em relação a este assunto. Já vimos mulheres em profissões que nunca se pensaria que alguma vez o viessem a fazer ou lhes viesse a ser permitido (pelos homens, claro). No entanto, no contexto religioso, permanece a questão se elas poderão exercer a função sacerdotal. Poderão ou deverão as mulheres também ser consagradas ao sacerdócio (no caso da Igreja Católica), ou ao serviço pastoral (no caso das igrejas evangélicas)? Disseram-me que eu era a única pessoa que conheciam que tinha uma posição favorável a este assunto. Fiquei abismado. Será que mais ninguém aceita que as mulheres também podem exercer esta função na vida da Igreja de Jesus Cristo? Procurei juntar uma série de ideias que fui compilando ao longo dos anos para apresentar as razões por que concordo que elas sejam consagradas.
1. Ponto de Partida
Qualquer cristão que se preze tem a preocupação em saber qual é a vontade de Deus para a sua vida e para a vida da Sua igreja. Por isso, procura na Bíblia a resposta às suas dúvidas ou preocupações. Mas não podemos esquecer que ninguém consegue aproximar-se dos textos bíblicos sem as suas pressuposições. A nossa educação, formação e contexto cultural têm sempre influência na maioria das nossas posições e formas de pensar. Daí que seja necessário refletir se efetivamente estamos a ser influenciados pelo texto que nos fala ou se estamos a influenciar o texto com as nossas ideias preconcebidas. Os opositores de Jesus usaram muitas vezes os textos sagrados para o condenarem. E a igreja primitiva confrontou-se com grupos que usavam as Escrituras para defenderem posições antagónicas.
O facto é que não podemos usar as nossas experiências e contextos culturais nem tão pouco a voz da consciência para determinar qual o ponto de vista verdadeiro ou correcto. No entanto, é preciso ter uma chave e medida para interpretar as Escrituras assim como a nossa consciência e/ou experiências.
a. A Chave de Interpretação
João, o evangelista, registou no seu evangelho palavras de Jesus que serviram de factor comum para a proclamação do evangelho quando exarou as palavras de Jesus que disse: “Examinais as Escrituras, porque vós cuidais ter nelas a vida eterna, e são elas que de mim testificam” (João 5:39). Jesus Cristo, como é retratado pelas Escrituras e testemunhado nas Escrituras, é a única palavra de Deus que devemos ouvir, confiar e obedecer.
Paulo também está preocupado em afirmar que é Cristo que fala através dele e faz coisas extraordinárias por seu intermédio (2 Cor. 13:3; Rm. 15:18). Segundo ele, Jesus Cristo é o único fundamento da fé cristã (1 Cor. 3:11). De acordo com o evangelista João, Jesus Cristo é que é a verdadeira Palavra de Deus que se fez carne e habitou entre nós (João 1:14). Do mesmo modo o autor da epístola aos Hebreus, falando acerca de Jesus Cristo, diz que ele é a palavra viva e eficaz (Heb. 4:12). Esta Palavra de Deus (ho lógos tou theou ), isto é, Jesus Cristo, é que penetra até ao mais íntimo do ser humano para discernir pensamentos e intenções, “e não há criatura alguma encoberta diante dele” (este pronome “dele” refere-se à “Palavra de Deus” no versículo anterior) (Hebreus 4:13). O teólogo baptista Thorwald Lorenzen escreveu: “O evangelho por sua verdadeira natureza era e é uma palavra viva antes de se tornar a palavra escrita” (palestra apresentada na Igreja Baptista de Camberra, Austrália).
b. Continuidade e Descontinuidade
A palavra de Deus foi sempre pregada em situações de continuidade e descontinuidade. A continuidade na linguagem, cultura e costumes foi sempre necessária para ganhar a confiança das pessoas, para ter contacto com elas e comunicar-lhes o evangelho. Esta é a razão por que encontramos no texto bíblico códigos de instruções domésticas, pois os crentes eram chamados a terem um comportamento que fosse usual e aceitável no mundo greco-romano. Por exemplo, as mulheres são aconselhadas a não falarem na igreja (1 Cor. 14:35), a não ensinar nem a ter autoridade sobre os homens (1 Tim. 2:12) e a aceitar o facto de que o homem é a cabeça da mulher (Col. 3:18). Os escravos devem obedecer aos seus senhores (Ef. 6:5) e os filhos aos seus pais (Col. 3:20). Tudo isto diz respeito ao comportamento da época.
Ao mesmo tempo a singularidade e a novidade radical da mensagem cristã só podia vir à luz se a descontinuidade do evangelho com a cultura também fosse reconhecida. Com a ressurreição de Jesus Cristo, Deus falou uma nova palavra, uma palavra criadora e moldadora da história. Por isso é que temos a ordem para que os maridos “amem as suas mulheres” (Ef. 5:25, 28, 33). Para os cristãos, a autoridade suprema para a visão moral da vida não pode ser a cultura nem os costumes, mas deve ser a revelação de Deus na ressurreição do Cristo crucificado: “vós servis a Cristo, o Senhor” (Col. 3:24).
Esta reflexão sobre a continuidade e a descontinuidade leva-nos a uma regra hermenêutica importante. Para se tentar descobrir o conteúdo e a ênfase da visão cristã sobre a realidade, devemos prestar mais atenção à descontinuidade do que à continuidade com a situação em que a fé se tornou evento. A identidade e a integridade da fé, muitas vezes, jaz na sua diferença da cultura à sua volta. Quando se realça que as mulheres devem ser submissas e não podem falar na igreja nem ensinar, estamos a falar da semelhança com a cultura da época. É nos textos onde se afirma a igualdade do homem e da mulher que se nota a diferença para com a sociedade daquele tempo; é quando as mulheres tomam a liderança nas igrejas fundadas nos lares que se nota a diferença; é quando as mulheres são identificadas como apóstolos, e diáconos e profetas que a novidade da fé cristã começa a afectar e a moldar a história (mais adiante voltarei a falar sobre isto).
É preciso fazer uma reflexão teológica cuidada quando interpretamos a palavra viva e pregada a partir do texto escrito. Paulo escreveu as suas cartas para situações específicas da sua época. Por isso, o pregador deve falar a palavra de Deus para as situações do seu tempo. Depois de conhecer o “ali e então” passamos ao “aqui e agora”. Compreendendo a língua e os costumes e os problemas naquele tempo, é que podemos falar com uma nova língua e costumes para os problemas da nossa época. É por esta razão que temos quatro evangelhos e não um só. É por esta razão que Paulo escreveu várias cartas e não apenas uma para todas as igrejas. O conteúdo cristológico do evangelho tomou formas diferentes em situações diferentes.
Quando a palavra falada passou a escrita surgiu o risco de o evangelho vivo ficar congelado nas palavras exaradas no papel. Também cairemos na armadilha se esquecermos, por exemplo, que os quatro evangelhos e as cartas aos Romanos, Coríntios, etc. não foram escritas para nós. As mesmas palavras não significam a mesma coisa quando a situação muda. É nossa tarefa, quando lemos os escritos bíblicos, distinguir entre os elementos situacionais e aqueles que transcendem a situação. Para os cristãos, a “palavra de Deus” é evangelho, não lei. A palavra de Deus viva deve permanecer ligada à “história de Jesus” que permanece viva através do poder do Espírito Santo.
(continua...)
A aguardar pelo resto do texto... muito interessante, até agora. Abraço!
ResponderEliminarExcelente introdutório, deixou-me faminto pelo continuar: por gentileza, publique a conclusão desta importante reflexão! Abç!
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