Ultimamente temos estado a estudar os livros de Reis, cuja leitura sempre levanta uma série de questões históricas, teológicas e morais. As nossas dúvidas surgem porque estamos habituados a olhar para o texto com um certo pressuposto que restringe a nossa capacidade de compreensão, quando nos deparamos com certos problemas. Embora continuemos a afirmar que este texto tem o sopro (inspiração) de Deus, com o propósito de nos ensinar algo fundamental para a nossa vida, não podemos esquecer que o escritor desta magnífica obra usou várias colecções de histórias antigas e outras tradições, fazendo uma selecção cuidadosa, para expor aos seus leitores a mensagem que ele tinha consciência que vinha de Deus. Várias vezes nós encontramos nestes livros expressões tais como: “Quanto ao mais dos actos de (fulano), e a tudo quanto fez, porventura não estão escritos no livro da história ( ou crónicas) dos reis de (reino)” (1 Reis 11:41; 14:19, 29; etc.). Isto mostra que ele utilizou essas fontes.
Os estudiosos do Antigo Testamento, começando com Martin Noth, são unânimes em considerar que os livros que vão de Josué até 2 de Reis foram escritos por um historiador influenciado pelo texto de Deuteronómio que tinha um objectivo teológico em mente. Pegando em todas as fontes que lhe estavam à mão, o historiador deuteronomista escreveu esta obra soberba, certamente para explicar ao povo a razão por que tinham sofrido toda a destruição da sua terra e o cativeiro da Babilónia.
É evidente que esta obra apresenta apenas partes da história de Israel e de forma reduzida. Os livros de Reis também são um esqueleto de “uma história que se estende desde a ascensão de Salomão até à destruição de Jerusalém, em 587”, conclui Brevard Childs, na sua obra Introduction to the Old Testament as Scripture (1979; pg. 288). Isto demonstra que a escolha do escritor é propositada e consciente. Ele deixa de fora aquilo que não lhe interessa e pega só naquilo que será útil para a mensagem que pretende transmitir, ou melhor, que ele sente que Deus quer que ele transmita. Ele tem um propósito do qual não quer desviar-se. Childs apresenta, pelo menos, duas intenções bem definidas. Ele diz que, primeiro, o autor quer mostrar que a história tanto de Israel (Reino do Norte) como de Judá (Reino do Sul) é só uma história do único povo de Deus. “Apesar da divisão política em dois reinos, o escritor recusa-se a tratá-los separadamente” (pg. 288). Portanto, estamos perante um propósito bem claro que é a interpretação teológica da história deste povo. Em segundo lugar, o escritor persiste em falar das razões para o julgamento iminente. As referências constantes a que determinado rei não fez o que era recto aos olhos do Senhor ou que andou no pecado de seus pais revelam que ele procura explicar teologicamente o julgamento divino.
Para o escritor sagrado era importante pegar nos eventos e encontrar a única explicação plausível para o que estava a acontecer com o povo. É evidente que ele muitas vezes não harmoniza muito bem as fontes de que lançou mão, mas isso é certamente para demonstrar que ele as está a utilizar e quer dar uma nova orientação interpretativa aos acontecimentos, principalmente quando procura mostrar a vontade suprema de Deus.
No texto sobre Eliseu, no capítulo 6:8-23, lemos que o rei da Síria estava em guerra com Israel, mas o profeta adivinhava todos os planos do rei inimigo e denunciava-os ao rei de Israel. O rei da Síria quis acabar com Eliseu, mas acabou nas mãos do rei de Israel. Este quis acabar com os sírios, mas Eliseu disse para os alimentar e deixar partir. Em forma de conclusão o historiador escreveu: “E apresentou-lhes um grande banquete, e comeram e beberam; e os despediu, e foram para o seu senhor; e não entraram mais tropas de siros na terra de Israel” (6:23). A expressão “não entraram mais tropas de siros…” literalmente é “e as tropas de siros nunca mais se juntaram para entrar na terra de Israel”. A palavra “mais” diz respeito à negativa e não ao sujeito “tropas”. No entanto, logo a seguir lemos que Ben-Hadade, rei da Síria, ajuntou todo o seu exército, e subiu e cercou Samaria (6:24). A cada história que o historiador deuteronomista recebia, ele colocava a sua criatividade a funcionar para transmitir a mensagem que Deus lhe tinha dado. Os versículos 22 e 23 estão cheios de vocabulário que é usado particularmente pelo historiador deuteronomista, tais como “grande” (gadôl), “juntar” (yasap), “mais” ( 'aôd), “tropas” (gedôd). Esta palavra para “tropas”, por exemplo, é um termo que se usou mais tarde em hebraico.
Com o episódio de 6:8-23, o historiador queria demonstrar que Iavé trava as lutas do povo sem que este mova uma palha e também queria dizer que a vontade de Deus é que se trate bem os inimigos. Este texto certamente antecipa o que Jesus, mais tarde, viria a dizer: “Amai os vossos inimigos, bendizei os que vos maldizem, fazei bem aos que vos odeiam e orai pelos que vos maltratam e vos perseguem” (Mateus 5:44). Esta é a vontade suprema de Deus. No entanto, o escritor de Reis antecipa ainda outra pergunta dos seus leitores: “E se, depois de terem um grande banquete, os nossos inimigos voltarem a atacar?”. Ele responde com outro episódio e mostra mais uma vez como Deus actua sem que o ser humano precise de fazer o que quer que seja (7:6-7).
Portanto, as narrativas podem mostrar uma falta de continuidade, como neste caso, mas o objectivo do escritor mantém-se, porque a mensagem que Deus tem para os leitores deste texto é única. Naquilo que Deus quer dizer há unidade, mas o escritor precisa de usar a sua criatividade, com vocabulário da sua época e desenvolvendo o enredo.
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