Com a disciplina de Introdução à Filosofia, comecei a ficar fascinado pela forma como devíamos pensar as coisas à nossa volta. Apesar de ter crescido num ambiente evangélico, onde se preconizava a importância de uma fé viva e dinâmica, reconheço que as ideias do iluminismo fizeram mossa nas ideias que foram sendo exaradas na minha mente de criança. Mas, como acontece com toda a gente, chega a altura em que já não dá para acreditar mais no Pai Natal invisível, porém, pintado com as cores da coca-cola. É preciso dar uma explicação para as prendas que surgem debaixo da janela. As dúvidas cartesianas ocorrem, e para cada resposta a uma pergunta levanta-se nova pergunta num encarreirar sem fim. Foi assim que enveredei pelo estudo da teologia. Terminada a licenciatura em Portugal, muitas questões continuaram a brotar no meu interior, porque tinha recebido uma formação muito ortodoxa e até fundamentalista. Eu não podia duvidar daquilo que estava escrito na Bíblia. tinha de aceitar pela fé, sem qualquer outro tipo de explicação. Então no que dizia respeito ao Antigo Testamento, muitas vezes ficava sem argumentos perante aqueles que questionavam as histórias ali escritas que por mim eram defendidas como factos históricos. Tendo decidido continuar os meus estudos teológicos na Suíça, encontrei uma outra postura de ensino que dava sentido e explicação lógica às perguntas que eu fazia.
Um dos livros que me ajudou na compreensão do Antigo Testamento, foi a obra de Otto Kaiser, Introduction to the Old Testament, publicado em 1969, na Alemanha, e traduzido para o inglês em 1975. Que eu saiba não há tradução em português. Por isso resolvi traduzir para aqui um pequeno trecho do seu capítulo "Introdução" (p. 1-3), que certamente ajudará os leitores que tenham dificuldade em aceitar o texto bíblico como palavra de Deus para nós hoje.
"A dificuldade do leitor actual da Bíblia é uma de dois tipos. Ele pode acreditar que sabe exactamente como e em que circunstâncias Deus se revelou na história de Israel e na história de Jesus porque, um livro inspirado por Deus, dá-lhe informação acerca disto, a qual está livre de contradição e lacunas. Neste caso, muitas vezes, ele é compelido de todo, no interesse das suas ideias pré concebidas, a ignorar os detalhes individuais, e se lhe apresentam tensões e contradições, a procurar, com vários graus de uma boa consciência, subterfúgios que lhe permitam manter este ponto de vista. Ou, por outro lado, ele pode ver neste livro apenas uma colecção complicada de documentos de uma fé antiga, de cuja infantilidade, crê ele como homem da idade do iluminismo, ele se encontra acima, sem levantar a questão, ou mesmo suspeitar, quão profundamente os nossos modos ocidentais de pensamento foram influenciados por este livro, e quão grande esta influência se deu até ao primeiro trimestre deste século (XX) do que é agora. A aparente estranheza e afastamento impedem-no de ver que a reivindicação feita aqui para testemunhar de Deus teria, ainda hoje, uma força e uma vida desconhecida. estes dois tipos de dificuldade, no nosso ponto de vista, resultam do facto de que vivemos numa época que pensa historicamente, e compreende o curso da história nas suas ligações temporais e factuais. Depois que saímos da infância, não conseguimos encontrar um acesso honesto para um livro que vem de séculos passados, na verdade de milénios, que não partilha estas (para nós óbvias) pressuposições de pensamento, a menos que sejamos informados, adequadamente, sobre a sua origem histórica e sobre o mundo de onde ele vem. Por esta razão, um conhecimento da formação da Bíblia é um pré-requisito inevitável para a compreendermos. Isto é verdade para cada leitor da Bíblia, uma vez que o conhecimento histórico e técnico se tornou propriedade comum através da disseminação da educação e dos meios de comunicação, mas é especialmente assim para aquele que deseja tornar inteligível a outros homens a reivindicação da Bíblia em dar testemunho da palavra de Deus.
Para se ouvir e compreender o testemunho do livros bíblicos correctamente, é necessário saber em que alturas e em que circunstâncias eles passaram a existir. Isto envolve um conhecimento de história, de religião e de teologia de Israel e do judaísmo, assim como do mundo do qual eles surgiram. Supunha-se que uma 'Introdução ao Antigo Testamento' lidasse, consequentemente, com tudo o que é necessário para a sua total compreensão. No decorrer do desenvolvimento da erudição, este título tem, de facto, chegado a cobrir uma concentração sobre o tratamento dos problemas literários, dos géneros (ou tipos) de literatura, da composição e formação dos livros individuais e da transmissão do texto e origem do Cânon. Há, obviamente, razões práticas para isto, na medida em que seria um absurdo tentar tratar todos estes assuntos numa simples palestra ou num só livro com vários volumes. Juntamente com as Introduções ao Antigo Testamento também há obras sobre a língua hebraica e aramaico, sobre o mundo do Antigo Testamento, sobre a arqueologia e geografia bíblicas, sobre a história, a religião e a teologia de Israel, sobre a história subsequente do Antigo Testamento na igreja cristã e, finalmente, sobre hermenêutica, como assuntos independentes. Todas estas disciplinas dependem, em maior ou menor grau, da exposição detalhada de versículos individuais, de secções e de livros do Antigo Testamento, que em trabalho de erudição contemporâneo e, sem dúvida, também em trabalho futuro, elas avançam quase tanto como são desenvolvidas por ele. Elas criaram, por referência aos resultados da exegese, uma estrutura para a compreensão das passagens individuais. E elas mudam na medida em que esta compreensão se altera e, espera-se, cresce à medida que se altera."
Esta também é a minha convicção. Antes de lançarmos um repto ao texto bíblico precisamos de o compreender, e para o compreender precisamos de utilizar várias ferramentas das diversas áreas: literária, sociológica e histórica. No final de tudo isto, certamente conseguiremos entender o que o escritor, inspirado por Deus, quis transmitir à sua geração e consequentemente a cada um de nós hoje. Vale a pena procurar entender a Bíblia, porque nela encontramos princípios divinos para a nossa vida, que nos trarão muita felicidade e razão de viver.
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