Um dos argumentos que os defensores da “Não Consagração das Mulheres” utilizam é o “Argumento da Criação”. Utilizam o texto de Génesis 2:3-25 para afirmarem que “O homem foi criado primeiro e não a mulher e neste ponto a sequência é importante pois torna-se indicativa de autoridade.” (Joed de Souza)
No entanto, uma leitura atenta de Génesis 1 e 2 mostra-nos que há duas narrativas. O capítulo 1 descreve a criação do mundo com a ordem seguinte: criação da luz, separação das águas, produção da vegetação, surgimento dos astros, criação dos peixes, criação dos animais na terra e, no mesmo dia, o ser humano. O capítulo 2 narra que depois de ter feito a terra, Deus modelou o ser humano do pó da terra, não havendo ainda vegetação na terra. Só depois é que criou um jardim para colocar lá o ser humano e consequente vegetação. Entretanto, Deus diz que não é bom que o homem fique sozinho, então ele cria todos os animais e apresenta-os ao homem, mas nenhum deles se adequava a ele. Foi quando Deus decidiu pôr o homem a dormir e tirar-lhe uma “costela” e fazer uma mulher. Como se pode ver a ordem é diferente.
No mundo académico, quase todos os eruditos do Antigo Testamento aceitam que os primeiros cinco livros são compilações de várias tradições que surgiram primeiro por tradição oral e depois por escrito entre o povo israelita. Portanto, de acordo com o estilo e o vocabulário que aparece no texto de Génesis 1:1-2:4a, este trecho é peculiar de um escritor que tinha preocupações sacerdotais. Isto quer dizer que o escritor, provavelmente sacerdote, queria mostrar a razão por que se deveria guardar o sabath. Concomitantemente, estava interessado em “fornecer uma base e legitimidade ao aparato cultual. Em torno dele a comunidade devia se agrupar [sic] em sua condição restaurada.” (Brueggemann, “O Querigma dos Escritores Sacerdotais” em Dinamismo das Tradições do AT, 1984, 122). Por outro lado, ele tem interesse na pureza, simetria, legitimidade e ordem. Ora este texto foi escrito durante o exílio ou pouco tempo depois. Em Génesis 1:26-27 temos o texto básico da criação do ser humano. A palavra hebraica ‘adam é um termo genérico para o ser humano que consiste do género masculino e feminino. O método que Deus usa não é o mesmo que Ele usou para os elementos anteriores. Antes ele dizia: “Haja... e houve”. Agora, Deus expressa a sua intenção no contexto da corte celestial (“façamos”). É importante notar que o versículo 27 usa três vezes o verbo criar (bara’) com o objetivo de “ unir o ato especial da criação com as suas formas de dualidade sexual. ... Nenhuma diferenciação é feita em termos de prioridade temporal ou função.” (Childs, OT Theology, 189). De acordo com este texto, a criação do macho e fêmea é feita simultaneamente, e o papel de ambos na criação também é descrito de forma unida. Não vemos aqui nenhum indício de exercício de autoridade de um sobre o outro. Mas o texto diz que ambos “dominarão” (radah) sobre tudo o que se move sobre a terra (v. 26, 28). É preciso ter em consideração o capítulo 1 de Génesis e procurar saber qual a sua funcionalidade na globalidade da narrativa.
Passemos agora ao texto de Génesis 2:4b-25. De acordo com o estilo e o vocabulário, estamos perante uma das composições literárias mais antigas de Israel, que foi produzida durante o período após a morte de David até pouco antes do reinado de Roboão. O escritor ficou conhecido como sendo o Iavista, em parte por causa do uso do nome Iavé. Neste texto, o escritor usa o termo hebraico ‘adam, que normalmente é traduzido por “homem”. Até ao versículo 17, a palavra pode muito bem ser interpretada como uma referência ao ser humano em geral. O problema está a partir de 2:18, onde se menciona a formação de um “ajudador” (‘ezer). Normalmente as traduções portuguesas interpretam como sendo uma referência a uma mulher. Por isso traduzem por “uma adjutora” ou “ajudadora”. Mas deve haver alguma razão para o autor usar a palavra hebraica no masculino em vez do feminino. Para ser coerente com o texto hebraico algumas versões já começaram a palavra “companhia” (BPT). A palavra pode significar “ajuda” ou “socorro” ou “auxílio”. E das vezes que é usada, mesmo em relação a Deus (Dt 33:7, 29), não denota nenhum grau de inferioridade. Portanto, o que a palavra significa é “aquele que ajuda”. Por outro lado convinha lembrar que o salmista, quando procura ajuda, reconhece que a ajuda (‘ezer) “vem do Senhor” (Sal. 121:1-2; cf. 124:8). Além disso temos a palavra (kenegedô) que normalmente é traduzida por “que esteja como diante dele” enquanto outras traduções dizem “idónea”. Mas o Léxico de BDB traduz por “correspondente a ele” ou melhor “igual e adequado a ele mesmo”. A realidade é que entre os animais não havia nenhum que fosse igual e adequado a ele (‘ezer) (2:20). A palavra “idónea” nem será má de todo porque significa “que tem condições, competências, habilitações ou conhecimentos necessários para desempenhar determinado cargo ou tarefa”. Neste caso não podemos esquecer que o objetivo de Deus era que o ser humano, macho e fêmea, dominassem sobre tudo o que se move na terra e não um sobre o outro.
Notemos os verbos que falam da criação/formação do homem e da mulher. Em Génesis 2:7, o termo hebraico é yatsar, que significa “formar” ou “moldar”. Portanto, primeiro Deus deu forma ao ser humano (’adam) utilizando o pó da terra. Mas Ele quer fazer um outro ser humano que seja uma "ajuda" (2:18). Para isso, o autor bíblico usa o termo "fazer" (‘assah), que é o mesmo que aparece no texto em que Deus diz: “Façamos o homem à nossa semelhança...” (Gén. 1:26). Entretanto, lemos no texto bíblico que Deus formou (yatsar) os animais da terra (2:19), para se chegar à conclusão que entre os animais não havia quem pudesse ser a "ajuda". Em seguida, a narrativa descreve o sono do ’adam e Deus a tirar-lhe uma “costela” (tsala‘) para “construir” (banah) a mulher (2:22). O termo usado para “costela” também é traduzido por “lado” em todas as outras passagens onde aparece (Êx. 25:12, 14; 26:26; 2 Sam. 16:13; 1 Reis 6:15-16; Ez 41:5, etc.), mas só nestes dois versículo (2:21-22) é que é traduzido por “costela”. Certamente os tradutores foram influenciados pela Vulgata Latina que utiliza o vocábulo costa, ae, cujo significado primário é “costela”, embora também possa significar “ilharga, flanco, lado”. Teríamos outra ideia se traduzíssemos o termo por “lado” também aqui, como algo que vai de alto a baixo. Deste modo, o conceito seria de que o ser humano foi moldado por Deus a partir do pó da terra e depois foi dividido em dois, sendo feita a recuperação do homem com o fecho do lado com carne, como diz o texto em 2:21 (a versão de Português Corrente diz: “e fez crescer de novo a carne naquele lugar”), e da parte que retirou fez a reconstrução para ser uma mulher. O termo hebraico banah também pode ser traduzido por “reconstruir” ou “reconstituir”. Deus até formou os animais (2:19) da mesma maneira que formou o ser humano (2:7), mas queria que a sua existência fosse de forma complementar um para o outro. Deus não queria um ser humano uni-singular ou que existisse por si só. A tradução “não é bom que o homem fique (esteja) só” não faz justiça ao texto hebraico. O verbo “ser” implica existir, e a expressão lebadô tem o sentido de “por si mesmo”. Por isso, ao criar o ser humano ele preferiu que ele existisse em duas pessoas distintas mas com as mesmas capacidades, porque um sem o outro nada conseguem fazer. Estes dois seres humanos passam a designar-se por “varão” (’ish) e “varoa” (‘ishah) porque ambos têm a mesma essência. No casamento, é o varão que tem de deixar pai e mãe para se unir à varoa e e existirem como uma só carne (2:24), para simbolizar aquilo que Deus fez em 2:21. Não se nota que o texto nos queira apresentar um sentido de prioridade e muito menos de hierarquia no casal.
Portanto, Deus, ao orientar os compiladores do texto para que as narrativas surjam na ordem que temos hoje, isto é, o texto mais recente (sacerdotal) preceder o texto mais antigo (iavista), queria tornar claro que homem e mulher foram criados à sua imagem e semelhantes e que ambos receberam a ordem de Deus para frutificarem e encherem a terra e dominarem sobre tudo o que há na terra. Não é propósito de Deus que o homem domine sobre a mulher e esta lhe seja sujeita, mas que vivam como uma só carne.
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