quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

NARRATIVAS HISTÓRICAS NO LIVRO DE ISAÍAS (Cap. 36-39)

 A destacar-se em todo o livro de Isaías aparecem estes quatro capítulos com características de narrativa histórica. Os oráculos de Isaías estão emoldurados em relatos e diálogos que marcam o plano de Deus revelado desde o início: “Se quiserdes, e me ouvirdes, comereis o bem desta terra; mas se recusardes, e fordes rebeldes, sereis devorados à espada; pois a boca do Senhor o disse” (Is 1:19-20). Daí que estes capítulos sejam únicos e despertem curiosidade quanto à sua função no meio do livro.

Estes capítulos correspondem ao texto que se encontra em 2 Reis 18:13-20:19 e ao texto de 2 Crónicas 32. Perante isto levanta-se a pergunta sobre quem copiou de quem.  Apesar de o texto apresentar o mesmo episódio, verifica-se que o texto de Reis não contém o salmo proferido por Ezequias (38:9-20). 

A partir daqui, fica-se com a ideia de que provavelmente foram os escritores da História Deuteronomística que foram buscar o texto a Isaías. Hans Walter Wolff destaca a forma como os profetas “Oséias, Isaías e Jeremias, anteciparam novos acontecimentos cataclísmicos, provocados por Deus. Puseram a nu a culpa de seu próprio tempo, submetendo-o à clara luz das ações divinas que ocorreram anteriormente” (Dinamismo das Tradições do AT, Paulinas, 1984, 99). Portanto, para Wolff, estes profetas do século VIII a.C. descreveram a realidade humana no seu contexto histórico, mas com a participação da atividade divina. E é a partir desta atividade profética que, no século VI a.C., surge a obra histórica gigantesca que vai de Deuteronómio até Reis. Ele até usa a expressão de que a obra é filha da profecia. Mas a ideia de que a profecia é que influencia a obra do historiador deuteronomista é também aventada por John Hayes quando afirma que “o deuteronomista incorporou, editou e talvez reescreveu várias tradições proféticas” (Introduction to the OT Study, Abingdon, 1979, 237). Entre algumas tradições ele refere o texto de Isaías 36-39. 

No que concerne ao livro de Crónicas, somos bem informados de que as suas fontes são os escritos proféticos. O cronista escreve, claramente, que sobre o rei Ezequias tanto os seus atos como as suas obras “estão escritos na visão do profeta Isaías, filho de Amoz, no livro dos reis de Judá e de Israel” (2 Crón. 32:32). De facto não nos compete duvidar da existência de fontes proféticas só porque não foram preservadas até nós. Como escreve Otto Kaiser, “quando ele [o cronista] refere as fontes proféticas, está a partilhar da visão sobre a autoria dos livros históricos que conhecemos na tradição rabínica, que a escrita e a transmissão da história sagrada remontam aos profetas e a homens de estatura semelhante”(Introduction, 1977, 179). O relato no livro de Crónicas apresenta um Ezequias mais motivador e não preocupado com a situação porque tem confiança em Iavé. Ao mesmo tempo coloca o rei como parceiro de Isaías na oração em clamor ao céu (32:7-8, 20). 

No entanto, Kaiser considera que estes capítulos não passam de um apêndice biográfico que deve ter sido acrescentado nas últimas décadas do século III a.C. Segundo este erudito, a primeira parte do livro de Isaías (cap. 1-39) foi estruturada de acordo com um esquema escatológico de três elementos que começa com oráculos contra a própria nação de Isaías (1-12), seguindo-se os oráculos contra outras nações (13-23) e termina com oráculos de salvação (24-35). O drama vivido pelos editores e redatores concernente à ameaça sobre Jerusalém leva-os à concepção da libertação e glorificação eterna. Por isso, “a imagem de ameaça e de libertação de Jerusalém em 701 formada pela tradição nas lendas de Isaías nos capítulos 36 e 37 constitui-se, então, o antítipo dos eventos de 587, e ao mesmo tempo o modelo  para o evento escatológico”. 

A conclusão de Kaiser é que o material que se encontra em Isaías foi retirado do livro dos Reis, omitindo a parte que fala da subserviência de Ezequias ao rei da Assíria (cf. 2 Rs 18:14-16). No texto de Isaías nota-se alguns arranjos, principalmente na narração sobre o sinal que Deus dará em que o texto é encurtado (cf. 2 Rs 20:1-11 com Is 38:1-8). Também o denominado Salmo de Ezequias (38:9-20) deve ter sido acrescentado na altura em que o texto sobre a doença de Ezequias foi rearranjado.

O erudito judeu Benjamin Sommer também é da opinião que estes textos foram exarados a partir do texto do livro dos Reis “porque o profeta Isaías tem um papel muito importante nestas narrativas. As narrativas históricas dos Reis parecem confirmar o ponto central de Isaías -  a inviolabilidade de Jerusalém, e assim pode ter servido como apêndice final atestando a veracidade das profecias do livro” (The Jewish Study Bible, Oxford, 2014, 835). O facto é que estes capítulos funcionam como uma ponte de transição para a segunda parte do livro de Isaías. Se até aqui Jerusalém tinha permanecido inviolável não significava que ela não iria sofrer as consequências de ser uma “nação pecadora, um povo carregado de iniquidade, uma descendência de malfeitores, filhos que praticam a corrupção! Deixaram o Senhor, desprezaram o Santo de Israel, voltaram para trás” (1:4). Ezequias estava a comportar-se tão bem, mas o orgulho e a vaidade, atitude consuetudinária do povo de Deus, deitaram tudo a perder. Não é por acaso que o capítulo 38 termina com uma pergunta: “Qual será o sinal de que hei de subir à casa do Senhor?” (v. 22). Pelos vistos esteve mais preocupado em mostrar os seus tesouros aos embaixadores da Babilónia. As consequências viriam, mas não no tempo de Ezequias. 

Estas narrativas históricas são como que um sumário da proclamação do profeta Isaías e um esboço dos eventos que acontecem na história de Israel. Pode-se concluir que o texto é trabalhado a partir da fonte dos livro dos Reis e que também serviu de fonte para a narrativa do Cronista. A sua colocação é fundamental para a compreensão de todo o livro de Isaías. “Historicamente o Primeiro Isaías falou principalmente de julgamento para o Israel pré-exílio. Por outro lado, a mensagem do Segundo Isaías foi predominantemente de perdão”(B. S. Childs, Introduction, SCM Press, 1979, 327).  Pegando na ideia de Childs, estes capítulos mostram que a mensagem de Isaías de julgamento sempre se concretizou, porque certamente entre o texto de 39:8 e 40:1 há um hiato de alguns anos até à queda de Jerusalém e deportação para a Babilónia. Entretanto, as últimas palavras de Ezequias mostram o espírito egotista que predominava no meio do povo. Mas, concomitantemente, é um ponto de partida para o consolo do povo de Deus. 

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