terça-feira, 30 de novembro de 2010

ORDEM HIERÁRQUICA NA FAMÍLIA?

Olhamos à nossa volta e verificamos que as sociedades se estruturam em dois pólos: os que mandam e os que obedecem. Aristóteles, na sua obra Política, logo no primeiro livro, defendeu que a hierarquia é uma coisa da natureza, que uns nasceram para governarem e outros nasceram para serem governados. Ele argumenta com referências ao reino animal e com as estruturas sociais, onde há homens livres e escravos. Da mesma forma, este princípio que se encontra na natureza é aplicável à estrutura familiar. O homem nasceu para comandar, enquanto a mulher, para obedecer. No capítulo XIII, deste mesmo livro, ele afirma que há tipos diferentes de governo, como por exemplo: o homem livre governa sobre o escravo de forma diferente daquela que o macho governa sobre a fêmea, ou o homem sobre a criança. Ele parte do princípio de que a alma está em cada um deles, mas em graus diferentes. O escravo não tem qualquer faculdade deliberativa; a mulher tem, mas não possui autoridade; a criança tem, mas é imatura. As virtudes morais também diferem na hierarquia. Já Sócrates dizia que a temperança, a coragem e a justiça de um homem e de uma mulher não são as mesmas. Por isso Aristóteles conclui: a coragem de um homem é demonstrada no comando, a de uma mulher, na obediência. E, segundo ele, isto aplica-se a todas as outras virtudes. Quem lê toda a obra de Aristóteles verifica, à semelhança de eruditos como Lührmann, Thraede e Balch, que os códigos domésticos (que os alemães chamaram de Haustafeln) apresentados no Novo Testamento são idênticos. Os pontos de contacto são: 1) relacionamentos entre três pares de classes sociais – homem e mulher, pais e filhos, senhores e escravos; 2) estas classes estão relacionadas reciprocamente; 3) uma das classes sociais é a que decide enquanto a outra é a que obedece. Isto mostra que, a princípio, havia uma aceitação tácita das estruturas sociais no início do Cristianismo, em parte, porque se esperava que Jesus viesse muito em breve, o que levava os crentes a pensarem que o melhor era viverem naquelas circunstâncias, fazendo tudo “em nome do Senhor Jesus” (Col. 3:17).


Mas o contexto do código doméstico em Efésios (5:22-6:9) mostra-nos que há um objectivo diferente. A secção deve começar no versículo 21 que diz: “sujeitando-vos uns aos outros, no temor de Cristo”. O autor da epístola procura defender a unidade dentro do corpo de Cristo e utiliza as estruturas sociais para demonstrar que toda a igreja deve obedecer a Cristo. É por isso que ele desenvolve o seu pensamento, em comparação com Colossenses (3:17-4:1), dizendo que “somos membros do seu corpo”. E depois de citar o grande propósito de Deus para o casal, que é unirem-se e serem os dois uma só carne, ele conclui que este é um grande mistério no que concerne a Cristo e à igreja (Ef. 5:32). O ideal de Deus é que no relacionamento entre duas pessoas que têm Cristo no coração não haja hierarquias, mas unidade de pensamento, sintonia, harmonia e procura de alvos comuns.

Paulo, na sua carta aos Coríntios, depois de apresentar o conceito corrente entre os judeus sobre a origem do homem e da mulher, conclui que “no Senhor, nem a mulher é independente do homem, nem o homem é independente da mulher; pois, assim como a mulher veio do homem, assim também o homem nasce da mulher, mas tudo vem de Deus” (1 Cor. 11:11-12). É este mesmo Paulo que em Gálatas escreve: “Pois todos sois filhos de Deus pela fé em Cristo Jesus. Porque todos quantos fostes baptizados em Cristo vos revestistes de Cristo. Não há judeu nem grego; não há escravo nem livre; não há homem nem mulher; porque todos vós sois um em Cristo Jesus” (3:26-28). Este princípio de unidade, na fé cristã, não estabelece hierarquias. O seu grande objectivo é dizer que Deus não faz acepção de pessoas, pois todos têm os mesmos direitos. Este é um princípio que vai contra os costumes da época defendidos pelos filósofos.

O ensino de Jesus é categórico sobre a questão da hierarquia entre pessoas crentes. Embora ele se dirigisse aos discípulos, o texto bíblico é para todas as pessoas que constituem a igreja. Marcos relata que Tiago e João tentaram a sua sorte pedindo a Jesus um lugar de destaque, mas a resposta de Jesus foi clara: “Sabeis que os que são reconhecidos como governadores dos gentios, deles se assenhoreiam, e que sobre eles os seus grandes exercem autoridade, mas entre vós não será assim; antes, qualquer que entre vós quiser tornar-se grande, será esse o vosso servo; e qualquer que entre vós quiser ser o primeiro será servo de todos” (as palavras em itálico correspondem aos termos gregos diákonos e doulos respectivamente). Não há hierarquias na comunidade cristã, mas serviço e submissão mútua, para haver harmonia, unidade e paz. Este mesmo princípio deve ser aplicado na vida familiar.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

NASCIDO "EM" OU "COM" PECADO?

Um dos textos que é usado para se defender que já nascemos com pecado, e, por isso, somos pecadores, é o Salmo 51:5. Era este mesmo versículo que o famoso e teólogo Agostinho usava para apoiar a sua ideia de que a raça humana é depravada como resultado do pecado de Adão, que se foi transmitindo de pessoa para pessoa, pelo que mesmo os infantes que não forem baptizados são culpados e não herdam as bênçãos dos céus.
Em relação ao texto supra citado a tradução de João Ferreira de Almeida diz: “Eis que em iniquidade fui formado, e em pecado me concebeu minha mãe”. A Versão da Imprensa Bíblica Brasileira traduz: “Eis que eu nasci em iniquidade, e em pecado me concebeu minha mãe”. A edição da Sociedade Bíblica de Portugal em português corrente escreve: “Na verdade, sou mau desde que nasci; sou pecador desde o ventre da minha mãe”. Por fim, a Bíblia do Homem enfatiza: “Sei que sou pecador desde que nasci, sim, desde que me concebeu minha mãe”. As duas últimas versões procuram realçar a natureza pecaminosa do ser humano desde a sua concepção. Dão a ideia de que no momento da fecundação já a pessoa é má ou pecadora, desde o momento da sua existência adquire um “gene” qualquer que o marca para sempre. As duas primeiras versões já dão outra ideia ao utilizarem a preposição “em”. Só falta saber em que sentido se usa esta preposição. Em hebraico a preposição be tem três significados: em; junto; com. Os conceitos que o Léxico apresenta em relação à tradução “com” nunca inferem algo inato. Mas quando a preposição é traduzida por “em”, ela transmite um estado ou condição, quer seja material ou mental, na qual ocorre uma acção. Desta forma, o salmista está consciente que quando foi formado já havia um estado de iniquidade e nasceu num ambiente de pecado.
O estudioso do Antigo Testamento Mowinckel afirma que o autor sabe que “desde o seu nascimento está manchado com pecado”, mas mais adiante já diz que esta frase “não implica qualquer doutrina de «pecado original»”. No entanto, o que ele quer dizer é que o ser humano começa a pecar, ainda que inconscientemente, desde o seu nascimento numa ou noutra coisa (The Psalms in Israel’s Worship II, 14). Mas esta interpretação contradiz os versículos anteriores, onde o salmista claramente afirma que pecou contra o Senhor e que conhece as suas transgressões. Afinal ele tem consciência do que fez. Entretanto, ele reflecte que todo o ambiente à sua volta, desde o seu nascimento, é um ambiente de pecado. Ele descreve o estado da humanidade em geral.
É evidente que a questão que se coloca é sobre a culpa. Como é que o ser humano se torna culpado diante de Deus? Se ele já nasce com a marca do pecado ou se já está geneticamente fadado ao pecado, como poderá ele ser culpado diante de Deus? Já no tempo dos profetas Jeremias e Ezequiel havia o conceito de que os filhos recebiam a culpa dos pais, mas eles foram categóricos em dizer que tal conceito estava errado. “Vivo eu, diz o Senhor Jeová, que nunca mais direis este provérbio em Israel… a alma que pecar, essa morrerá” (Ez. 18:2-3); “cada um morrerá pela sua iniquidade” (Jer. 31:30). De acordo com as Sagradas Escrituras, “o homem é culpado perante Deus por causa do seu pecado pessoal, não porque herdou uma culpa estranha que remonte ao primeiro homem e à primeira mulher” (Dale Moody, The Word of Truth, 289).

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

GRAÇAS A DEUS PELOS ALÓGENOS

Mais um milagre estudado no culto da semana e mais um versículo que chamou a atenção para a reflexão neste blog. O evangelista Lucas mostra uma certa predilecção por casos com samaritanos, os quais abrangem o evangelho e o livro de Actos. Isto significa que, de vez em quando, o evangelista procurou dar uma lição, através do ministério de Jesus, claro, a certos crentes judeus que se achavam os únicos herdeiros da salvação. No episódio relatado em Lucas 17:11-19, cujo título alguns comentaristas gostariam de alterar para “A gratidão do samaritano” ou “A ingratidão dos nove”, lemos a seguinte frase de Jesus: “Não se achou quem voltasse para dar glória a Deus, senão este estrangeiro?”. O ponto interessante está nesta palavra “estrangeiro” que em grego se translitera por allogenês. Só Lucas utiliza esta palavra. Foi esta palavra que deu origem ao termo português “alógeno”. Com o importante trabalho da arqueologia encontraram uma pedra que fazia parte do muro do templo com um aviso muito sério, que dizia: “Nenhum estrangeiro (allogenê) deve entrar no perímetro do templo. E qualquer que for apanhado só terá de se culpar a si pela morte subsequente”. Como se pode ver temos a mesma palavra na inscrição e que eu destaquei no texto em baixo.












Certamente, os cristãos judeus continuavam a pensar que os samaritanos e até os gentios só teriam direito à salvação se guardassem os preceitos judaicos, ou, por outras palavras, as suas tradições, cultura e pensamentos. Lucas, porém, quer ajudar estes crentes a não serem sectários, mas a saberem viver com todas as pessoas, ainda que tenham origens diferentes. Logo no versículo 11, ele descreve Jesus como aquele que está entre dois povos para os unir (passa entre [em grego: meso] Galileia e Samaria). Dos dez leprosos, esperava-se que pelo menos os judeus voltassem para dar glória a Deus, mas, pelos vistos, preferiram ficar em casa, satisfeitos com a sua limpeza cerimonial. De acordo com alguns eruditos, parece que havia mais samaritanos do que judeus no tempo do Novo Testamento (cf. J. Bowman, The Samaritan Problem, Pittsburgh Theological Monograph Series, No. 4, 2004), o que fazia a diferença na propagação do evangelho. Eles também faziam parte do plano de Deus.
Transpondo esta lição que Lucas dá ao povo judeu para os nossos dias, gostaria de expressar a minha tristeza quando ouço algumas pessoas reclamarem que as nossas igrejas estão cheias de “estrangeiros”. Ainda bem que são só algumas. No entanto, é necessário colocar o dedo na ferida e dizer que, se não fossem estes “alógenos”, os pastores não teriam ninguém a quem dar o estudo bíblico no culto da semana, porque os portugueses estão cansados demais para saírem de casa. Se não fossem estes alógenos que “invadiram” as nossas igrejas, não havia pessoas para o louvor, para a música, para a liderança, para a evangelização e outras actividades das igrejas. Graças a Deus por estes alógenos que se juntam a nós para louvar a Deus em alta voz. Não queremos colocar a inscrição de aviso que os judeus tinham à entrada do templo nas nossas igrejas, porque em Jesus Cristo não há judeu nem grego, escravo ou livre, homem ou mulher. O que é preciso é encaixar tradições e culturas diferentes umas nas outras e formar um só povo que louva a Deus e testemunha do Seu amor.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

ELEIÇÃO OU DETERMINISMO

Na lição da Escola Bíblica Dominical de domingo passado, lemos o texto da epístola aos Efésios que diz o seguinte: “como também nos elegeu nele antes da fundação do mundo para que fôssemos santos e irrepreensíveis diante dele em amor” (Ef. 1:4). É evidente que este versículo levanta a questão da doutrina da eleição. Uns vêem esta doutrina como um acto soberano de Deus, ao qual ninguém terá possibilidade de dizer “não”, e que se torna um paradoxo com o livre arbítrio do ser humano. De acordo com esta ideia, que foi desenvolvida por Calvino, as pessoas que Deus escolheu para serem salvas serão salvas quer queiram quer não.
Entretanto tenho acompanhado as minhas leituras com o comentário aos Efésios que Marcus Barth escreveu para a colecção da Anchor Bible, o que me levou a transcrever um trecho das suas reflexões para podermos reflectir também sobre este assunto. Para este texto que citamos acima, ele escreveu um trecho de 4 páginas e meia sobre “Eleição em Cristo versus Determinismo”. Ele começa por apresentar seis razões por que a epístola aos Efésios “não poder ser a carta régia sobre a predestinação eterna de uma parte da humanidade para a bem-aventurança, e a outra parte para o inferno”. (Seria interessante analisar cada uma destas razões, mas o texto tornar-se-ia longo demais. Talvez numa outra oportunidade.) O seu objectivo é demonstrar que a doutrina da eleição é distinta do ensino sobre determinismo. Em seguida, ele apresenta 4 definições para a fórmula “em Cristo” que ele considera fundamental para a interpretação desta doutrina. Por fim ele escreve a sua conclusão do estudo que fez.
“Agora, pode-se chegar à conclusão que se distingue, decisivamente, entre a eleição de Deus, como é louvada em Efésios, e uma crença fatalista num decreto absoluto. Se a pessoa de Jesus Cristo é o objecto e o sujeito primário, o segredo revelado e o instrumento da eleição de Deus, e se ele representa todos os eleitos, então todas as noções de uma vontade, de um testamento, de um plano e de um programa de Deus fixos não são só inadequadas como também contrárias ao sentido de Efésios 1. A eleição não consiste na criação de um esquema que divide a humanidade em dois grupos opostos. Muito mais é aquela ligação de amor de pessoa para pessoa que existe na relação entre Deus e Seus Filho e é revelado somente pelos eventos que manifestam esse relacionamento. Assim, eleição nada tem a ver com uma prescrição ou plano. A eleição de Deus não é um decreto absoluto, mas está relacionado com o Filho, a sua missão, morte e ressurreição. O amor de Deus do Messias não está legislado nem afixado num livro. É um assunto do coração de Deus. Enquanto um esquema ou plano deve ser realizado de acordo com a letra, Jesus Cristo não recebeu uma descrição detalhada do seu trabalho. Pelo contrário, é-lhe dada a responsabilidade de agir livremente naquilo que agrada ao Pai. Para repetir uma observação anterior, um deus que tem destinado cada detalhe antecipadamente pode reformar-se ou morrer. A sua presença já é requerida. Mas o pai que revelará o seu amor e governo através do Filho vigia sobre o Filho, ouve as suas orações, vê a sua agonia, levanta-o dos mortos e derrama o Espírito dado ao Filho sobre muitos. Ele não permite que o sangue do Filho seja derramado em vão. Embora, na forma e substância, a acção de graças de Efésios 1se assemelhe às declarações judaicas (especialmente apocalípticas) contemporâneas, as palavras ‘em Cristo’ e a ênfase colocada na relação de Cristo com Deus e o homem revelam o carácter singular desta proclamação cristã da eleição eterna. O texto de Efésios 1 dá testemunho do Deus vivo, o Pai, o Filho e o Espírito. Tudo o que é dito é pessoal, íntimo e funcional. Um convite ao fatalismo sob o esquema da dupla predestinação ou outro plano determinista não se pode encontrar aqui.”
(Marcus Barth, Ephesians 1-3, vol. 34, The Anchor Bible, New York, Doubleday & Company, 1986, 11ª edição, 105-109)

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

ESPÍRITOS E DOENÇAS

Ao ler o texto de Lucas 13:11, fiquei a pensar o que é que Lucas queria dizer com o facto de que na sinagoga, onde Jesus estava a ensinar num dia de Sabath, havia “uma mulher que tinha um espírito de enfermidade” (gunê pneuma échousa astheneias). O relato continua com Jesus a pronunciar à mulher a sua libertação da enfermidade, e termina com Jesus a repreender o chefe da sinagoga e todos os presentes por não quererem que num dia de Sabath se operasse a libertação da mulher que Satanás aprisionara.
Nos séculos do modernismo, os intérpretes da Bíblia têm aplicado a perspectiva científica negando e até considerando o texto bíblico como lendas da carochinha. A realidade é que temos um problema em mãos quando tentamos interpretar as questões da doença e da cura sem nos preocuparmos com o tipo de conceitos e linguagem que os escritores bíblicos usaram na sua época. John J. Pilch, num capítulo que escreveu sobre “Sickness and Healing in Luke-Acts” para a obra editada por Jerome H. Neyrey, The Social World of Luke-Acts: Models for Interpretation (1991), diz que para se perceber o que Lucas queria dizer é necessário “uma forma para se imaginar a linguagem de Lucas sobre doença e cura nos termos da sua própria cultura… A sensibilidade para as diferenças culturais e os requisitos das investigações e comparações das culturas convida o leitor a utilizar os métodos e conceitos apropriados às ciências sociais” (pg.182).
Quando analisamos o evangelho de Lucas nesta área das doenças e das curas verificamos que a cosmovisão do evangelista é caracterizada por um conjunto de crenças e práticas populares relativas à actividade dos espíritos e demónios. Lucas é o evangelista que tem mais relatos sobre as influências dos espíritos nas pessoas, mas que se traduzem em enfermidades. “Todos os contemporâneos de Jesus e os seus seguidores, no Mediterrâneo, acreditavam na realidade de um mundo de espíritos que regularmente se intrometiam nos assuntos humanos. A razão por que o mundo dos espíritos pode parecer mais evidente ou activo em Lucas do que em qualquer outro evangelista é que os seus leitores estavam provavelmente mais inclinados para esta forma de percepção e compreensão” (Pilch, 198).
Portanto, para as pessoas daquela época, todas as doenças eram identificadas com um espírito maligno. A sogra de Pedro tinha um espírito maligno que era denominado de “Febre” (puretós) e foi repreendido por Jesus (Lc 4:39). Um mudo tinha um espírito mudo e por isso não falava (Lc. 11:14). Quanto aos outros episódios, sempre há a referência de que Jesus curava os que tinham espíritos imundos. Lucas usava uma taxonomia das doenças das pessoas que era compreensível para a época. No entanto, “é importante ter em mente que ainda que as doenças relacionadas com os espíritos formem uma categoria de enfermidade, isto é, uma taxonomia, cada episódio deve ser interpretado no seu valor próprio, pois cada um será distintamente diferente” (Pilch, 203). Infelizmente a transposição dos conceitos daquele tempo para os tempos actuais tem levado muitas pessoas a usarem a mesma taxonomia e a considerarem que as doenças que as pessoas têm hoje são o resultado da acção demoníaca.
A minha opinião é que o evangelista, usando a terminologia do seu tempo, desejava mostrar que Jesus era superior aos medos e preconceitos que as pessoas tinham. Jesus tinha poder para restaurar as pessoas, individual, social e espiritualmente. No relato da mulher paralítica ou curvada, podemos notar que o manuscrito uncial D (codex Bezae), conhecido pela sua característica em alterar, acrescentar ou omitir texto, isto em finais do século V e inícios do VI, alterou a frase mencionada no início para “uma mulher que era enferma no espírito”. Com isto vemos que os copistas procuravam adaptar os textos às suas culturas e épocas. Contudo, a nossa tarefa não deve ser alterar o texto, mas entrar no mundo do evangelista e procurar compreender o que ele queria dizer.
O objectivo de Lucas é dizer que a pessoa que foi presa por Satanás, a partir de um determinado momento (há 18 anos), não tem capacidade para se endireitar por si mesma (note-se a frase mê dunaménê anakúpsai). Como qualquer pessoa devota a Deus, ela precisava de estar direita e levantar os olhos ao céu para adorar ao Senhor. A palavra grega traduzida por “endireitar” também aparece em Lucas 21:28 com o significado de “olhar para cima”. Partindo de uma situação física, Lucas dirige o pensamento dos leitores para a situação espiritual. É por isso que as palavras de Jesus são: “Mulher, estás livre (em grego é o Perfeito "apolélusai") da tua enfermidade”. Mas o ponto alto da narrativa deste episódio encontra-se no versículo 15, onde Lucas passa a usar o termo “Senhor”, para que os leitores tenham consciência de que quem fala é o Senhor ressurrecto, o Senhor da igreja, e não o Jesus terreno. Naquela sinagoga havia o espírito da hipocrisia que grassava nas pessoas que não queriam ser incomodadas no dia de Sabath; que não olhavam para a necessidade daquela mulher (foi preciso que Jesus a visse e a chamasse), mas que olhavam para as suas necessidades (soltavam os seus animais para lhes dar de beber); que se opunham (significado do termo “Satanás”) a que aquela mulher encontrasse a libertação da sua prisão.
Assim que Jesus colocou as suas mãos sobre ela, imediatamente ela ficou direita. O termo usado por Lucas foi anorthóô, que significa uma reconstrução ou restauração de uma estrutura caída. A estrutura essencial desta mulher estava completamente dobrada, porque Satanás, patente nas instituições sociais e religiosas, a mantinha dobrada espiritualmente porque ela tinha um defeito físico. A partir do momento em que ela fica direita na sua estrutura essencial, ela passa a glorificar a Deus. A ênfase não está na cura física, mas na libertação de tudo aquilo que a aprisionava e impedia de adorar a Deus (cf. Lev. 21:18-21).

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

MEDICINA E MILAGRE

E tirando-o à parte de entre a multidão, pôs-lhe os dedos nos ouvidos e, cuspindo, tocou-lhe na língua. E, levantando os olhos ao céu, suspirou e disse: Efatá, isto é, abre-te.” (Mc 7:33-34)

Estes versículos fazem parte do episódio sobre a cura que Jesus realizou a um surdo, narrado no Evangelho de Marcos. Segundo Bultmann, este relato faz parte do material narrativo que a tradição cristã foi desenvolvendo a fim de transmitir a mensagem de salvação para o ser humano através de Jesus Cristo. É evidente que para ele o que importa é ver nesta história, designada por História de Milagre, um apelo a uma decisão existencial por parte da pessoa que lê ou ouve o relato. Portanto, as histórias não têm um propósito biográfico no sentido estrito para a vida de Jesus. Diz ele que, “os actos miraculosos não são provas do seu carácter, mas da sua autoridade messiânica, ou do seu poder divino” (History of the Synoptic Tradition, Herper & Row, 1976, 219). Deste modo, as histórias são trabalhadas de forma a fazerem as pessoas crer que Jesus é o Messias. Com este pensamento, ele não está muito preocupado com a historicidade dos acontecimentos e chega mesmo a considerar que dificilmente se poderá encontrar o que é que aconteceu historicamente debaixo da capa editorial dos evangelistas.

A maioria dos seus alunos, porém, conseguiu demonstrar que é possível encontrar o cerne histórico que deu origem depois à proclamação da fé. Para isso, começaram a estabelecer um programa criteriológico que desse consistência à convicção dos actos históricos de Jesus. Um dos critérios utilizados para apurar a historicidade dos milagres de Jesus é o que se chama de “Critério do Constrangimento” (John P. Meier, Um Judeu Marginal, Imago, 1993, 170). Com este critério, os estudiosos querem dizer que o evangelho tem relatos que criam dificuldades à igreja primitiva. Portanto, se a igreja estivesse preocupada em criar histórias fantásticas, nunca iria criar aquelas que iriam fazer o efeito contrário.

Neste relato, por exemplo, nós lemos que Jesus praticou uma série de actos que provocariam uma certa repugnância e nojo nas pessoas. O verbo “cuspir” está associado ao verbo “tocar”. A tradução da Sociedade Bíblica de Portugal em português corrente diz: “Pôs-lhe os dedos nos ouvidos e tocou-lhe na língua com saliva”. Também poderíamos traduzir: “e tocou-o cuspindo-lhe na língua”. Para quem queria apresentar um ser divino, por que haveria de mencionar uma coisa que criaria um sentimento de repugnância? O facto é que Mateus e Lucas, que estruturaram os seus evangelhos a partir do de Marcos, omitiram por completo este episódio. Terá sido por isso? Vários manuscritos procuraram outras posições para o verbo “cuspir”, colocando-o ora antes do verbo “pôr” ora depois (Vincent Taylor, The Gospel According to St. Mark, Baker Book house, 1981, 354). Mas o texto mais original mantém o verbo associado ao “tocar na língua”.

Outro elemento quer dá garantias de que este episódio é real é o facto de que estas acções eram muito comuns como técnica dos curandeiros gregos e judeus. Tácito e Suetónio escreveram que o imperador Vespasiano curou um homem com cuspo. Josefo, na sua obra Antiguidades, conta muitas histórias de homens que faziam curas semelhantes. Portanto, no ambiente palestino havia estas práticas que incluía: levar o doente para um lugar à parte, o toque com as mãos, o uso da saliva com poderes terapêuticos e o encorajamento verbal numa língua diferente. Ainda que o aramaico fosse a língua falada no tempo de Jesus por muitos judeus, o texto bíblico foi escrito em grego, e por isso o escritor deixa ficar o termo efathá. A realidade é que Jesus usou as técnicas correntes na sua época. Uma pequena diferença que encontramos no texto é o facto de Jesus olhar para o céu. Jesus podia usar a medicina convencional, mas não deixava de ensinar que mesmo assim a cura vem de Deus. O milagre dá-se na pessoa, que não consegue obedecer à proibição para não divulgar o que aconteceu. Os versículos 35 a 37 são certamente elementos de redacção do evangelista que acaba por usar um vocabulário diferente, para mostrar o que acontece na vida interior de uma pessoa que se encontra com Jesus.

Em conclusão, perante este episódio na sua tradição mais antiga e fidedigna com o que aconteceu, aprendemos que não há incompatibilidade entre a medicina e o milagre, porque apliquem o que aplicarem, usem o que usarem, Deus é quem tem a última palavra no processo. Efatá!

quinta-feira, 29 de julho de 2010

O TRIBUNAL DE DEUS

Desde que o ser humano deixou de acreditar na existência do julgamento divino, o conceito de justiça desmoronou-se. As pessoas começaram a fazer o que queriam porque sabem que sempre conseguirão provar a sua inocência. Num julgamento actual, tudo é possível. De ambas as partes envolvidas no julgamento pode-se assistir ao fabrico de provas, às testemunhas falsas (e vá-se lá saber quem está a falar a verdade). Os processos vão-se arrastando a ponto de já não sabermos como foram os factos. Todos querem justiça. Os arguidos dizem que só se fará justiça quando os declararem inocentes. Os acusadores (vítimas) dizem que só se fará justiça quando os culpados forem julgados como culpados. Os que assistem a todo este imbróglio começam a simpatizar com uma das partes e fazem os seus próprios julgamentos, muitas vezes sem conhecimento das provas em concreto.
Confesso que olhando para todos estes processos mediáticos já não sei em quem acreditar. Terão realmente os acusadores, o Ministério Público, forjado provas? Será que as vítimas foram subornadas para fazerem as acusações? Terão os arguidos tentado comprar as vítimas? Será que destruíram provas importantíssimas para o processo? O facto é que ninguém tem visão de raio x para perscrutar o íntimo de mente de cada ser humano para descortinar a verdade do que aconteceu.
É por isso que Paulo escreveu aos romanos, fazendo duas perguntas cruciais para chegar à conclusão mais premente que o ser humano tem posto de parte. O texto diz: “Mas tu, por que julgas a teu irmão? Ou tu, por que desprezas teu irmão? Pois todos havemos de comparecer ante o tribunal de Cristo” (Romanos 14:10). Os manuscritos mais antigos têm a palavra “Deus” em vez de “Cristo”. O que se pode deduzir é que os copistas posteriores alteraram a palavra por influência do versículo anterior, mas também pela convicção de que Cristo é Deus. De uma forma ou de outra, Paulo está a falar do tribunal de Deus. Por outras palavras, ele está a dizer que o ser humano facilmente se esquece que tem um tribunal superior a ele, e por isso incorre em duas atitudes que não são louváveis: o julgar e o desprezar. Estas atitudes não são louváveis porque, primeiramente, estão inseridas no contexto da comunidade cristã, onde todos foram salvos pela fé em Cristo e feitos participantes da família de Deus, por adopção divina e, em segundo lugar, porque todos (pántes) vamos comparecer no tribunal de Deus.
A palavra “julgar” (krínô) tem o sentido de um julgamento severo que se faz do irmão. Esta atitude não dignifica em nada a comunidade cristã nem honra o nome de Deus. Se a sociedade secular não tem tido melhoras nos comportamentos judiciais é porque os cristãos não têm demonstrado o benefício de vivermos numa comunidade onde devia imperar o amor e não o dedo acusador. Quem sou eu para acusar um irmão meu que procura viver o melhor que pode e sabe em comunhão com Deus? Mas a atitude de desprezo (eksouthenéô) também não é boa. Há muitas pessoas que parece que têm orgulho em desprezar os outros porque confiam em si mesmos e se acham justos. Será que se perdeu a noção de que somos uns miseráveis pecadores que precisam da graça de Deus? Quem sou eu para me considerar superior ou mais justo do que os outros?
Se eu não tenho capacidade para fazer um julgamento recto e com equidade, então só posso esperar no julgamento de Deus. Só ele tem o poder de esquadrinhar todos os meus pensamentos e o dos outros e saber quais são as intenções do coração. Paulo, ao usar termos técnicos judiciais, mostra a seriedade do assunto. O termo “tribunal”, em grego bêma, era uma espécie de lugar elevado ou tribuna onde se faziam discursos públicos. A utilização deste termo aplicado a Deus denota a abertura e transparência do acto. Para Deus nada há encoberto que não se venha a saber. Desta forma não se dá azo a atitudes insidiosas e trapaceiras. Não há uma única pessoa que fique isenta do julgamento divino. Se assim não fosse, como poderíamos viver neste mundo sem escrúpulos, sem dó nem piedade? Se não houvesse o julgamento de Deus, todos estaríamos a fazer justiça pelas nossas próprias mãos e segundo a nossa perspectiva, que acaba por ser sempre duvidosa. James Dunn, sobre este versículo, escreveu o seguinte: “O julgamento cristão sobre as coisas é válido e na verdade essencial (v.5), mas o julgamento das pessoas deve dar lugar ao julgamento de Deus” (J. Dunn, Romans 9-16, Word Book, 1988, 808). É importante não esquecer que podemos ter pontos de vista diferentes sobre determinadas coisas e até ter opinião divergente sobre determinados comportamentos. No entanto, devemos é estar cientes se o fazemos para Deus ou para nossa própria satisfação. Deus lá estará para julgar as pessoas em última instância.
Se todas as pessoas tivessem este cuidado em não apontar o dedo aos outros, certamente a atitude de cada um seria diferente e conseguiríamos viver mais em paz e tranquilidade uns com os outros. Não nos esqueçamos: O tribunal de Deus é uma realidade, e todos nós estaremos lá um dia.

terça-feira, 27 de julho de 2010

HOJE, PEDIRÃO A TUA ALMA

O meu amigo Luís Monteiro mostrou-me um pequeno artigo, publicado na revista Sábado, do dia 6 de Agosto de 2009, intitulado “Hipoteca da alma”. Depois de ler o artigo, fiquei a pensar como as pessoas estão tão influenciadas pelo pensamento grego sobre a alma, propagado por Platão, que não sabem o que a Bíblia ensina sobre a mesma.
Parece que em Riga, Letónia, há uma empresa que empresta dinheiro, pouco, entre 70 e 700 euros, mas o cliente assina um contrato onde está explícito que dá, como garantia, a sua alma imortal, caso não pague a dívida. Os líderes das igrejas ortodoxa e luterana parece que ficaram alarmados, porque viram naquela empresa de crédito elementos satânicos. Ora, o problema reside no conceito que se tem da alma.

Oscar Cullmann, teólogo suíço de tradição luterana, publicou um estudo, numa espécie de oferta ao seu amigo Karl Barth, sobre a imortalidade da alma. Na realidade ele questiona se os cristãos acreditam na imortalidade da alma ou na ressurreição dos mortos. Neste opúsculo, ele demonstra que aquilo que a Bíblia ensina é a ressurreição dos mortos e não a imortalidade da alma (www.religion-online.org/showbook.asp?title=1115).

Na realidade não há texto bíblico que fale da imortalidade da alma. Lembro-me da passagem, que só Lucas relata, sobre o rico insensato (Lucas 12:13-21). Depois de muito semear e plantar, tendo recolhido em abundância, este homem fala, por assim dizer, com a sua alma, dizendo-lhe para ela descansar, comer, beber e folgar, porque tinha em depósito muitos bens para muitos anos. Entretanto, “Deus disse-lhe: Louco, esta noite te pedirão a tua alma; e o que tens preparado para quem será?”.

A palavra grega traduzida por “alma” é psuché, que muitas vezes é traduzida também por “vida” (cf. Lucas 12:22-23). Portanto, nem nesta passagem a palavra se refere à parte imaterial, como se fosse a verdadeira essência da pessoa ou, como diziam Sócrates e Platão, a verdadeira pessoa que precisa de se libertar da prisão, que é o corpo. A palavra “alma” engloba toda a pessoa vivente. Já no Antigo Testamento temos este conceito estabelecido. Deus ao criar o ser humano formou-o do pó (corpo) e deu-lhe o fôlego da vida (espírito) e assim surgiu uma alma vivente, isto é, um ser humano (Génesis 2:7). Este rico insensato pensava que era o dono de toda a sua vida. Por isso dizia, para si mesmo (alma): descansa, come, bebe e folga. Certamente que não era a alma, como parte imaterial, que iria comer e beber.

Entretanto, o que nós somos pertence ao Senhor, e é ele que um dia nos tira a vida e deixamos de ser, e tudo o que temos fica. Para quem?

Realmente a nossa alma (vida) está hipotecada quando pensamos nos bens materiais, porque achamos que tudo o que somos e vivemos depende do que temos. A nossa existência não depende só daquilo que comemos ou vestimos. Por isso é que Jesus disse: “A vida (psuché) é mais do que o sustento, e o corpo (sôma) mais do que o vestido” (Lc. 12:23). Há coisas que necessitamos e temos de recorrer, infelizmente, ao crédito, tal como a casa para ter um abrigo, mas não precisamos de estar preocupados com o que havemos de comer ou beber, porque o nosso “Pai sabe que havemos mister delas”. O que precisamos é de demonstrar plena confiança em Deus. Portanto, “buscai antes o reino de Deus, e todas estas coisas vos serão acrescentadas” (Lc. 12:31).

sexta-feira, 23 de julho de 2010

O Arranque

Várias pessoas amigas têm-me desafiado a criar um blog onde partilhasse os meus pensamentos. É verdade que gosto de reflectir, levantar questões, desafiar dogmas e esquadrinhar até ao mais ínfimo pormenor certos textos, principalmente bíblicos. Porém, sinto-me sempre retraído em pôr para fora o que vagueia pela minha mente. Não me considero um teólogo, mas apenas um aprendiz de teologia. Foi por esta razão que dei o nome a este blog de: Perspectivas Teológicas. Reconheço que no mundo do saber, principalmente relacionado com a área da Teologia, há sempre várias perspectivas. Contudo, não posso deixar de atender ao desafio que Pedro, o apóstolo de Jesus, lançou aos seus leitores cristãos no primeiro século: "estai sempre prontos para a defesa (apologia) quando vos pedirem a razão (lógos) da vossa esperança" (1 Pedro 3:15). Esta esperança tem dois pressupostos: em primeiro lugar, ela resulta de uma experiência pessoal com Cristo, quando o convidei a entrar na minha vida e a fazer-me nova criatura; em segundo lugar, também resulta de uma reflexão lógica, com todas as possibilidades de ser defendida apologeticamente. Sei que manter um blog exige muito do nosso tempo, o que às vezes escasseia, mas procurarei trazer periodicamente algumas reflexões daquilo que vou lendo. A todos quantos passarem por aqui, apenas peço paciência e tolerância. Se desejarem partilhar as vossas questões e reflexões, serão sempre bem-vindos.